sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

ARACY AMARAL, CURIOSIDADE E RIGOR

 Uma pesquisadora movida pela curiosidade e pelo rigor

Observadora atenta da cena cultural desde a década de 1950, a crítica, pesquisadora e historiadora da arte Aracy Amaral fala sobre sua formação, trajetória e sobre o desafio de fazer uma curadoria em tempos de pandemia


Aracy Amaral: “É uma batalha permanente”. Foto: Antonio Henrique Amaral/ Divulgação


Irrequieta, Aracy Amaral continua encarando o desafio de buscar caminhos para uma maior compreensão da arte e da cultura nacional. A despeito das enormes dificuldades impostas pela pandemia, vem trabalhando intensamente nos últimos tempos para dar corpo a uma exposição ambiciosa, que procura iluminar os vários modernismos que brotaram no Brasil nas primeiras décadas do século XX. A mostra, feita a quatro mãos, em parceria com Regina Teixeira de Barros, promete revelar uma trama interessante entre história, arte e pensamento nas primeiras décadas do século passado. Trama essa que, por contraste, deixa evidente uma das marcas do Brasil atual: a ausência de qualquer projeto coletivo, de superação da desigualdade e proposição de novas bases para o desenvolvimento nacional.

Pesquisadora, crítica, curadora, professora e, sobretudo, observadora atenta e curiosa da cena cultural brasileira desde a década de 1950, Aracy viveu com intensidade e vivacidade a segunda metade do século XX e as duas primeiras décadas do século atual. É, portanto, do ponto de vista privilegiado de quem se dedicou a investigar o passado e perscrutar o presente que ela conversou com a ARTE!Brasileiros. Na entrevista a seguir, ela fala sobre seus anos de formação, sobre a experiência à frente de instituições como a Pinacoteca do Estado e o Museu de Arte Contemporânea da USP, sobre alguns dos diversos temas de pesquisa aos quais se dedicou com rigor e curiosidade (como a preocupação social na arte; arte construtiva; arte contemporânea; as relações entre as culturas brasileira e latino-americana; o modernismo em geral – e Tarsila do Amaral em particular) e sobre a agonia e as adversidades decorrentes da pandemia.

ARTE! – Vamos começar falando da exposição que você e Regina Teixeira de Barros estão preparando para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no ano que vem, antecipando as celebrações em torno do centenário da Semana de 1922.

Aracy Amaral – Nós vamos falar dos vários modernismos no Brasil. A ideia é ampliar, cobrindo o período entre 1900 e 1937, quando se dá o golpe de Getúlio Vargas. Abordamos então o pré-modernismo, a chegada dos modernismos propriamente ditos na década de 1920 e depois, com a queda da bolsa de Nova York, a alteração de rumos, com a federalização, o surgimento de um nacionalismo de outro gênero. Vamos passar por toda essa transformação que vive o Brasil nesse período, a eletrificação, a reconstrução de várias cidades como São Paulo e sobretudo Rio de Janeiro, enfim, o que vai acontecendo no país. As artes, nesse aspecto, são apenas uma ilustração. E nós vamos querer que no catálogo haja ensaios. Já tratamos com vários autores: Felipe Chaimovich, que vai escrever sobre o pré-modernismo; Ana Maria Belluzzo, que vai escrever sobre modernismo; sobre poesia e literatura vai escrever a  professora Flora Süssekind; o Ruy Castro vai falar sobre o Rio de Janeiro; Cacá Machado vai escrever sobre música; e Luis Felipe de Alencastro vai escrever sobre a problemática política econômica e social no país nesse período. Nós queremos que seja como um debate, um catálogo sobre o que se passou nesse período.

ARTE! – É uma mostra histórica então, com uma trama bem complexa. Você disse que nunca tinha feito uma curadoria tão difícil. Por que?

O interesse é que seja histórico. Agora, estamos tendo muita dificuldade de conseguir as obras porque as instituições se fecham, cada uma quer fazer o seu. O MAM-SP quis fazer um ano antes (das comemorações de 22) justamente para não enfrentar essa competição de obras. Mas acontece que todos recusam, pensando no que farão no ano seguinte. Claro que a Pinacoteca não abre mão da Antropofagia, e agora estamos pendentes da resposta do Museu Nacional de Belas Artes. Enfim, é uma batalha diária. Nunca fiz uma curadoria tão árdua, tão dura, a gente tem que recomeçar várias vezes. Eu e a Regina já fizemos várias relações de obras. Em um momento em que está tudo fechado, a gente não pode ir ao Rio, não se pode mais ver as obras ao vivo, não podemos falar diretamente com as pessoas, é tudo por celular, computador. É mais complicado, muito pesado. Portanto, dependemos muito da boa vontade dos interlocutores.

ARTE! – Falando em pandemia, qual você acha que vai ser o principal efeito disso tudo, pensando no futuro. Esse olho no olho, esse contato pessoal é muito importante para um trabalho de garimpo como esse, não? Você acha que a gente vai conseguir achar um novo modelo, ou que a gente retoma do mesmo ponto?

Você diz do ponto de vista museológico, ou do ponto de vista de vida?

ARTE! – Dos dois.

Acho que é um enigma, a gente não sabe. Estamos tateando, sem saber que tipo de comportamento poderemos vir a ter. Está todo mundo grudado na tela, esgotado de ter ou dar aulas por computador. A gente não sabe o que vai acontecer no dia de amanhã, se as vacinas vão sair. Principalmente num país como o Brasil, em que tudo é imponderável, fruto de caprichos eleitoreiros, não há um planejamento visando a sociedade como um todo. No caso das classes menos favorecidas, que são as que mais sofrem, com o desemprego, com falta de recursos, a situação é de caos. Vivemos um momento de espera e ao mesmo tempo caótico.

ARTE! – Fazendo um paralelo com o período da exposição que você está trabalhando, acho que essa diferença é fundamental: hoje a gente não tem projeto. Vivemos um momento de desestruturação de tudo.

Pois é. E no caso do nosso país você não sente ninguém à frente do governo, com uma capacidade pensante que diga: temos um norte, estamos projetando isso para a região Norte, isso para o Nordeste… É tudo um enigma, não existe uma firmeza. Isso é doloroso, para um país de 210 milhões de habitantes.

Na 2a Bienal de São Paulo, conversando com o critico uruguaio Nelson di Maggio. Foto: Acervo Pessoal

ARTE! – Uma coisa que você sempre defendeu, como professora, é que o aprendizado de arte se dá olhando. Como fazer hoje?

Acho que ninguém está olhando, inclusive porque os jovens não leem livros, nem do ponto de vista de literatura nem do ponto de vista de história da arte. Sei lá, eu lia muito. A gente tinha que fazer resumo, tinha que fazer apreciação, tinha uma formação que hoje não existe mais. Eu me sinto totalmente obsoleta do ponto de vista de aprendizado e do ponto de vista de o que eles leem hoje. Não é o livro em si. Acho, por exemplo, que só se debruça sobre literatura quem está fazendo literatura.

Em geral a nova geração só vê o celular, veem quando muito o computador, quando tem que fazer os trabalhos escolares ou universitários. Tive um ex-aluno, que hoje é professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), que disse que seus alunos de artes visuais da ECA nunca foram ao MASP. Eles são de São Paulo e nunca foram ao MASP! Se a gente sabe que eles não têm o hábito de olhar, o hábito de ver, de acompanhar a escrita através do original, imagine agora. Mas você pode dizer: por isso mesmo eles têm um bom treino para tudo que nós estamos passando.

ARTE! – De certa forma a gente sempre está em minoria, não? Esse esforço pela democratização da arte, por tornar a arte acessível – uma marca de sua trajetória – não acaba.

Essa é uma luta insana, mas é uma luta que prossegue. É uma batalha permanente. Agora os museus tentam temperar, fazem coisas mais recreativas. Ir ao museu se tornou um passeio, você não pode levar muito a sério, porque senão ninguém vai. Há que se fazer exposições que distraiam. É complicado isso, ter que enganar o público. Não é como na Europa onde é possível fazer, sei lá, uma retrospectiva de um grande artista como Holbein ou Delacroix, que as pessoas vão visitar porque muitos deles já estudaram esses autores no curso ginasial, no secundário. Aqui não existe isso. Se nós temos dificuldade de alfabetizar, imagine se pensarmos do ponto de vista da alfabetização do conhecimento, da leitura dos períodos da arte. A situação é muito mais grave e não devemos pensar apenas do ponto de vista das grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Temos que pensar em termos do interior de Goiás, do interior do Ceará, do Pará. Imagine, é um deserto absoluto. Só escapa desse deserto aquele que tiver a possibilidade de ganhar uma bolsa e estudar fora. Não que aqui não haja bons professores, mas é muito pouca gente que segue, é muito pouca gente interessada nesse tipo de formação. É preciso alimentar a formação do artista, que ele saiba o que aconteceu no começo do século, o que aconteceu no século XIX, que tenha ideia do que ocorreu no fim do século XVIII. É uma raridade o artista que pode se expressar em relação ao que aconteceu no passado. Acontece o mesmo com os críticos de arte. Em 2011 participei de um grupo que fez a curadoria da exposição do Mercosul e notei que os críticos que tinham por volta de 40, 45, até 50 anos se interessavam apenas por artistas  que surgiram a partir da década de 1990 pra cá. O que aconteceu antes não conheciam e não tinham nenhum interesse em conhecer. Interessava do conceitual para cá. Há uma delimitação muito grande do ponto de vista geracional de estar aberto ou não para todas as épocas. Eu acho que é impossível querer ser um grande escritor sem ter lido os autores do começo do século XX, do fim do século XIX. Para mim é um enigma, uma pessoa ter uma formação na sua área sem conhecer os que o precederam.

ARTE! – Falando em formação, você poderia nos contar um pouco da sua. Na sua família há uma veia artística muito forte, não?

Minha formação foi eclética, confusa, caótica (risos). Mas acho que se houve influência artística familiar, veio tudo pelo lado da minha mãe, Abreu. Do nosso lado lusitano. Como meu pai era primo distante de Tarsila, todo mundo pensa que veio por aí, mas do lado da Tarsila não há absolutamente nenhum outro artista. Já minha mãe, minhas tias pintavam. Uma delas, que morreu aos 27 anos, era desenhista gráfica.

ARTE! – E foi nesse ambiente doméstico que o gosto foi se formando?

Não é que minha mãe fazia a gente se interessar. Mas do ponto de vista de influência, a gente sabia que minha mãe gostava dessas coisas, que minhas tias também gostavam. Havia um precedente familiar aí, mesmo que não fosse percebido. Só hoje percebo isso, olhando para trás. E creio que tanto eu como minhas irmãs e meu irmão pertencemos a uma geração que se formou numa época bastante tumultuada e alvissareira, do ponto de vista de curiosidade intelectual aqui no Brasil e em São Paulo em particular. Minha adolescência foi toda durante a Segunda Guerra Mundial, eu era chamada na minha casa de repórter Esso porque eu tinha verdadeira loucura para ouvir o que estava acontecendo. Eu despencava escada abaixo para ouvir o repórter Esso, queria saber onde estava a Alemanha, quem estava invadindo, se a França estava recuperando o território, sobre o bombardeio da Inglaterra. Enfim, vivenciávamos esse clima.

ARTE! – Foi esse apelido de repórter Esso que te levou ao jornalismo?

Minha formação é de jornalista e meus primeiros empregos foram como jornalista. Trabalhei na A Gazeta, no Diário de São Paulo, fiz uma coluna de correspondências na Folha de S.Paulo. Mais tarde, no começo da década de 1970 trabalhei também como redatora de publicidade, na mesma agência em que trabalhou Décio Pignatari e o jornalista Fernando Lemos. Éramos redatores. Fiz até um programa sobre arte na rádio Jovem Pan. Ele se chamava “Vamos falar de Arte?”. Parecia que não era nada, só dois minutos por dia. No começo eu fazia assim, ao vivo, direto, depois comecei a gravar e comecei a redigir porque as pessoas posteriormente me cobravam, por correspondência, por chamadas, por carta. E eu tinha toda a liberdade. Acho muito interessante esse meio de comunicação, que não foi superado nem pela televisão nem pela internet nem por nada.

Em 1951, entrevistando o diretor do MoMA, René d’Harnoncourt, para o jornal da Faculdade. Foto: Acervo pessoal

ARTE! – E a experiência como monitora da 2a Bienal de São Paulo, como foi?

Uma coisa leva a outra. Como eu dizia, em São Paulo na década de 50 havia muita vivacidade. Ao mesmo tempo eu fiz um pouco de dança contemporânea com a Yanka Rudzka, fiz mímica com Luís de Lima, me inscrevi para fazer cinema até que me aprovaram e eu fiquei apavorada, sai de medo. Fiz o Teatro Paulista do Estudante, estreamos no mesmo dia que estreou o Guarnieri, o Vianinha. Antonio Henrique, meu irmão, também participou dessa peça. Era tudo assim, todos tinham todas as aberturas possíveis. Então a jovem geração ficava muito contaminada. A gente se encontrava no final da tarde, todos iam ao Museu de Arte Moderna na rua Sete de Abril ver as exposições, discutir, assistir os filmes que o Paulo Emilio Salles Gomes projetava, todo mundo participava de tudo. Os que eram curiosos iam se nutrir da história da arte, da história do cinema, de exposições, conferências também na Biblioteca Municipal… A gente assistia tudo. Ficávamos até atordoados com tantas possibilidades, tão multidirecionais que a gente tinha. Daí um partiu para o cinema, outro partiu para o teatro. Minha irmã Ana Maria foi fazer criação de direção de teatro, foi morar em Nova York, e depois ela foi fazer teatro de bonecos, ser professora na ECA, ganhando prêmios internacionais. Suzana foi fazer cinema, Antonio Henrique foi pintar. Era uma coisa assim contagiante.

ARTE! – Acho que você tem uma capacidade surpreendente de mudar de assunto e de se apaixonar por novos temas.

Sim, isso para mim é fundamental, porque ficar parada num lugar só, com um tema único, é impossível. Tanto que eu fiz uma série de pesquisas sobre o modernismo. Primeiro “Artes Plásticas na semana de 22”, depois, a partir de Tarsila, eu vi tanta coisa na casa dela, tanto material documental, que acabei fazendo, antes mesmo do trabalho sobre ela, o livro Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. Porque me dei conta de como tinha sido importante a presença e a influência dele sobre Tarsila e Oswald de Andrade. Depois veio o livro sobre Tarsila, que eu apresentei como doutorado na USP, na ECA. Daí eu fiquei farta de modernismo, porque as pessoas só me chamavam para falar disso, sabe? Então pensei: preciso partir para outra. Então eu fiz a Expo-Projeção-73, sobre os jovens que estavam mexendo com as novas mídias, trabalhando com vídeo, todas as formas de expressão não usuais, em 1973. Daí comecei a ser chamada também, fui fazer palestra em Buenos Aires…

ARTE! – É a partir daí que você começa a circular mais intensamente pela América Latina ou essa conexão já existia?

Eu já tinha esse vínculo. Não sei se porque quando a gente era pequena, meu pai trabalhando com o Instituto Brasileiro de Café (IBC), nós moramos na Argentina. Fiz o primário lá. Aí eu voltei, tive umas aulas aqui para tirar todo o espanholismo de minha fala e fiz o ginásio em Santos. Mas não sei se terá sido isso. Por que eu me interessei pela América Latina? Será que foi pelo precedente da Argentina? Por que eu conhecia a história argentina melhor do que a nossa? Por que eu tinha feito primário lá?

ARTE! – Talvez porque você não tenha partido do lugar tradicional que o Brasil reserva aos vizinhos. O Brasil evita olhar para o lado.

Pois é, pode ser. O Brasil olha para fora. Eu sempre falei que os dois países mais similares na América do Sul são Venezuela e Brasil. Ambos têm os olhos postos fora e se interessam muito pelo que ocorre nos Estados Unidos, na Europa, e menos pelo que ocorre na América do Sul. Tanto é assim que a Venezuela vai ter os grandes cinéticos e o Brasil vai ter outras gerações de artistas plásticos também voltados para o exterior, com interesse na informação que vem de fora. Ao passo que os países andinos são mais fechados dentro de si próprios em suas tradições e Argentina, Uruguai e Chile são mais ligados à Europa. Retomando, eu estava cansada de fazer trabalhos sobre o modernismo e Tarsila, tinha encerrado esse aspecto, tinha encerrado já a Expo-Projeção e comecei a viajar pela América Latina. Tive uma iluminação através de um livro encontrado na casa da minha mãe. Estava fazendo muitos trabalhos com Luís Saia, sobre o patrimônio em São Paulo. Percebi que as casas que eles chamavam, entre aspas, de bandeiristas não eram senão uma “casa de hacienda”. Há inúmeros casos muito similares. Em São Paulo essas casas eram também todas distantes do centro, seja no Caxingui, seja no Butantã, em São Bento… Comecei a ver essas plantas, fui viajar, estive no Paraguai, fui para a Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela. Ia nas minhas férias da USP e muitas vezes quando ia para algum congresso fotografar essas casas. Eram muito similares, muitas persistiram até o século XIX. Não adianta que o Julio Katinsky, o Carlos Lemos fiquem falando de isolamento da casa paulista. Ela existe em toda a América do Sul, como um prolongamento.


Obra de Miguel Rio Branco exposta no 34º Panorama da Arte Brasileira, “Da pedra Da terra Daqui”, com curadoria de Aracy. Foto: Divulgação


ARTE! – Você descobriu que a imagem da padroeira argentina é brasileira?

Quando fiz esse estudo, em correspondência com um historiador jesuíta de Buenos Aires, descobri que a Imaculada Conceição, que se tornou a Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, é uma imagem paulista. E de qualidade menor que aquelas feitas em Santana do Parnaíba ou Mogi, mas havia, ao mesmo tempo, um comércio entre Lima e São Paulo. Temos que lembrar que havia outro tipo de intercâmbio, que depois foi superado. E os arquitetos aqui não tinham se dado conta disso porque nunca tinham viajado pela América do Sul. Preferiam viajar para Paris, para outros lados, então fixaram a ideia de que São Paulo tinha uma casa que só tinha aqui. Quando eu publiquei a A Hispanidade em São Paulo, eles não reconheceram o trabalho, em primeiro lugar porque eu era mulher, um fator a ser considerado queira ou não. Em segundo lugar porque eu não era arquiteta e estava falando de arquitetura e a FAU nesse aspecto não perdoa. Havia uma discriminação. Você não é arquiteta, você fica no seu lugar, escreve sobre história da arte, o que você quiser, mas não entre num terreno que não é o seu. Eu nem defendi a livre-docência com essa pesquisa porque eles iam dizer: você não é arquiteta. Uma não arquiteta escrevendo sobre arquitetura! A prova disso é que depois, quando me cansei do problema do concretismo e decidi fazer um trabalho sobre a preocupação social na arte brasileira, outra coisa que começou e me apaixonar, um amigo arquiteto me perguntou: “Seu capítulo sobre arquitetura você não vai publicar né?”. Ao que respondi: “Por que não? Faz parte do livro, já está até com editora”.

ARTE! – Você enfrentou muitas dificuldades? O Brasil parece ser um lugar em que, na arte, as mulheres tiveram um pouco mais de espaço do que em outros lugares. A que você atribui isso?

É verdade, o Brasil tem muita artista mulher. Nos Estados Unidos, as mulheres se queixavam, na década de 1970, 1980, que não havia espaço para elas, que eram perseguidas. É o caso até da mulher do Pollock, a Lee Krasner, ou da Helen Frankenthaler, mulher do Motherwell. No Brasil ao contrário, nossas grandes artistas são muitas: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Lygia Clark, Mira Schendel, Carmela Gross, Regina Silveira… Há uma infinidade de artistas mulheres que não podemos negar, porque elas fazem parte da história da arte do Brasil. Uma vez eu escrevi para uma revista em Nova York que me pediu um texto sobre isso. Nas décadas de 1950, 1960 e talvez até nos dias de hoje, as mulheres brasileiras talvez  tenham tido mais espaço para pesquisa que as mulheres da França, dos EUA, Alemanha, porque aqui sempre tiveram auxiliares que davam uma mão na casa enquanto em outros países a vida doméstica era muito mais dura. Esse é um dos lados.

ARTE! – Talvez também a arte aqui não fosse uma carreira tão valorizada pelos homens?

Se o Milton da Costa era um excelente artista até um certo ponto da vida dele, a Maria Leontina foi grande durante todo o decorrer de sua carreira. E no entanto ela mantinha também esse espaço discreto de ser a mulher de um artista que ela respeitava. Tanto que uma vez, nos anos 1970, um diretor do Guggenheim veio aqui e eu levei ele para conhecer vários artistas. Gostaria muito que ele conhecesse o trabalho da Maria Leontina. Liguei para ela para perguntar se poderia marcar. Ela me disse: “Aracy, seja bem clara comigo. Ele quer ver os meus trabalhos ou ele quer ver os trabalhos do Milton?” Eu falei: “Os seus”. Ela falou: “Me desculpe muito, mas prefiro então não recebê-lo”. O caso é muito datado, mas é peculiar. Veja bem, é o retrato de uma época.

Obras na mostra “Das Mãos e do Barro”, na Galeria Millan, sobre arte popular indígena e latino-americana, com curadoria de Aracy. Foto: Everton Ballardin

ARTE! – Aproveito essa história para falar desses movimentos mais recentes de resgate da arte das mulheres e dos negros também. Como você vê este movimento, mais ligado a causas identitárias?

Bem, o das mulheres está aberto aí porque os Estados Unidos já o fazem há muito tempo e aqui no Brasil começou de uma forma até meio exasperada mais recentemente. Mas a arte dos negros acho uma coisa incrivelmente positiva, porque nós ficamos fechados para a cultura negra, nós ignoramos a história da negritude. Até hoje você sabe que é uma disciplina que deveria ser ensinada em todas as escolas, mas não há nem professores especializados em África. Agora, nós estamos assistindo um outro tempo, não é? Na televisão vemos muitos anúncios em que há casais miscigenados, apresentam o negro de uma forma inaudita.

ARTE! – E do ponto de vista artístico há uma grande potência, talvez a mais importante do momento, na arte contemporânea, não?

Na verdade a inspiração afro sempre existiu, seja na pintura, em particular na música. Qual a maior influência internacional na música do século XX? É a música negra. Seja no tango, seja no samba, seja no ritmo caribenho, no jazz na música norte-americana, onde você quiser, o ritmo que se impôs é o ritmo negro, é a música internacional que chega a Paris. Não só por causa da Josephine Baker na década de 1920, mas porque é o ritmo do século XX. Não há dúvida nenhuma.

ARTE! – Outro capítulo nessa mesma linha, digamos, de lacunas que estão sendo escancaradas, é que o Brasil parece que começou finalmente a perceber que têm indígenas e que essa cultura também é importante para a gente.

Eu não sei se o Brasil já descobriu isso… Acho que ainda não. Porque no caso da presença africana isso não tem dúvida, está a flor da pele. Afinal de contas o branco hoje é uma minoria no Brasil. E o que é o branco? Ninguém sabe se existe branco no Brasil. É muito raro. Quem não é miscigenado de alguma forma? Existe a herança indígena, mas para nós ela transparece muito na arte popular, que também é uma coisa que ainda não foi assimilada e aceita. Não falo só da arte pura, tipo cestaria Yanomami, mas da arte popular do interior do Ceará, que é riquíssima, ou do Piauí… Já existem inúmeras galerias trabalhando nessa direção. Mas ainda não existe uma aceitação que valorize o caráter precioso dessas obras, entende? Mesmo a preservação delas.

ARTE! – Dentre seus trabalhos recentes, está a curadoria de uma mostra de desenhos de Tarsila, em cartaz na Fábrica de Arte Marcos Amaro. Você poderia falar um pouco sobre esse aspecto da obra dela?

A exposição – que é uma curadoria conjunta também com Regina Teixeira de Barros, grande estudiosa e curadora – traz o desenvolvimento do percurso da Tarsila a partir do desenho. É muito curioso ver como o exercício do desenho pautou o desenvolvimento e a libertação dela como artista, desde, digamos assim, o estudo, a formação, primeiro acadêmica, depois parisiense, com grandes mestres da época como Andre Lhote e Gleizes, até chegar a uma liberação total e ela se sentir apta a voltar à figuração, numa viagem a Minas, com toda liberdade, mas com um espírito de síntese muito grande. Depois ela vai cair um pouco numa figuração, num realismo tão ao gosto das décadas de 1930, 1940, 1950, que é a época que, digamos assim, vai liberar também uma figura como Portinari. Uma época também em que ela escreve crônicas para o Diário de S. Paulo, e faz muita ilustração para livros, muitíssimas. Como não existia mercado para a pintura, ela vive de ilustrações, vive também de crônicas. Não é uma época de inatividade, mas de alteração de atividade.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Se você tivesse que escolher dentre as várias personalidades que você tem, como critica, professora, diretora de museu…

Eu não sei o que eu seria. Eu fui uma mistura de tudo isso. Em cada momento eu fui uma coisa. Se eu fui vanguarda na década de 1960, 1970, depois eu fui historiadora na década de 1970, 1980. Depois fui diretora de museu. Eu curti demais ser diretora da Pinacoteca, porque eu alterei completamente a imagem da Pinacoteca. Era um museu fechado, que as pessoas faziam sinal da cruz quando passavam na frente pensando que era um templo. E depois comecei a fazer exposições, cursos lá dentro, curso de modelo vivo, exposições temporárias. Mudei a Pinacoteca e essa mudança, que foi sensível, foi um prazer, uma satisfação enorme. Colocar lá Ana Maria Belluzzo, colocar lá o Paulo Portella, um fazendo arte-educação, outro me ajudando na pesquisa, poder montar lá aquela exposição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, cursos, tudo foi muito interessante. Nesse período da Pinacoteca ainda haviam os salões, uma época em que acabou. Os artistas jovens eram lançados a partir de salões de cidades pequenas e depois, com os prêmios que eles ganhavam, passavam para um outro patamar.

ARTE! – Hoje dependem do mercado.

Agora, a partir das décadas de 1980 e 1990, um fenômeno novo entra no mundo da arte no Brasil: Volpi, por exemplo, que vendia muito pouco até a década de 1940. Ele vai fazer a primeira exposição em 1944, numa pequena galeria, na Barão de Itapetininga. Não tinha nem catálogo ainda e ele tinha 48 anos de idade. Hoje tem muito artista com 40 anos que já tem livro publicado como se fosse uma obra acabada. Era outro ritmo. O artista produzia, uma pessoa ia fazer uma bienal ou um grande salão, ia no ateliê do artista, escolhia as obras. Hoje o artista faz as obras para o evento. O mercado hoje é avassalador. E para a minha geração é um fenômeno novo. É lógico que para os jovens hoje é o princípio fundamental da atuação deles.

ARTE! – Philip Kennicott, do Washington Post, afirmou há pouco que se sente “mais livre para gostar das coisas sem pedir permissão” em função da pandemia. Não lhe parece assustador esse reconhecimento?

Muitos curadores e críticos que nós conhecemos, que tem entre 30 e 50 anos, estão atrelados ao mercado, você sabe disso. Muitas vezes a gente não nomeia, mas sabemos quem são. A gente trabalhava com museus, com entidades. Se eu tenho que recorrer a uma galeria, eu faço isso com um pouco de recato, digamos assim. Porque eu acho que mercado é uma coisa e quem faz uma curadoria tem que ter um outro ponto de vista, procurar museus, procurar colecionadores privados. Agora, muitos curadores ou jovens críticos não vão à casa dos artistas, não vão às casas dos colecionadores. Você pode alegar: não vão porque não conhecem, não têm acesso. Pois é, mas por que a gente tinha? Por que conseguíamos entrar? Vai ver porque eram pessoas que publicavam em jornal e o nome já era conhecido, então eles abriam as portas para vocês. Mas hoje o curador, um jovem crítico, escreve para o catálogo de galerias. Ou seja, ele já escreve para o mercado. Ele não tem o hábito de frequentar o ateliê do artista nem de frequentar a casa do colecionador.

Exposição “Tarsila, estudo e anotações”, com curadoria de Aracy e Regina Teixeira de Barros, na FAMA, em Itu, 2020

ARTE! – Se você tivesse que escolher dentre as várias personalidades que você tem, como critica, professora, diretora de museu…

Eu não sei o que eu seria. Eu fui uma mistura de tudo isso. Em cada momento eu fui uma coisa. Se eu fui vanguarda na década de 1960, 1970, depois eu fui historiadora na década de 1970, 1980. Depois fui diretora de museu. Eu curti demais ser diretora da Pinacoteca, porque eu alterei completamente a imagem da Pinacoteca. Era um museu fechado, que as pessoas faziam sinal da cruz quando passavam na frente pensando que era um templo. E depois comecei a fazer exposições, cursos lá dentro, curso de modelo vivo, exposições temporárias. Mudei a Pinacoteca e essa mudança, que foi sensível, foi um prazer, uma satisfação enorme. Colocar lá Ana Maria Belluzzo, colocar lá o Paulo Portella, um fazendo arte-educação, outro me ajudando na pesquisa, poder montar lá aquela exposição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, cursos, tudo foi muito interessante. Nesse período da Pinacoteca ainda haviam os salões, uma época em que acabou. Os artistas jovens eram lançados a partir de salões de cidades pequenas e depois, com os prêmios que eles ganhavam, passavam para um outro patamar.

ARTE! – Hoje dependem do mercado.

Agora, a partir das décadas de 1980 e 1990, um fenômeno novo entra no mundo da arte no Brasil: Volpi, por exemplo, que vendia muito pouco até a década de 1940. Ele vai fazer a primeira exposição em 1944, numa pequena galeria, na Barão de Itapetininga. Não tinha nem catálogo ainda e ele tinha 48 anos de idade. Hoje tem muito artista com 40 anos que já tem livro publicado como se fosse uma obra acabada. Era outro ritmo. O artista produzia, uma pessoa ia fazer uma bienal ou um grande salão, ia no ateliê do artista, escolhia as obras. Hoje o artista faz as obras para o evento. O mercado hoje é avassalador. E para a minha geração é um fenômeno novo. É lógico que para os jovens hoje é o princípio fundamental da atuação deles.

ARTE! – Philip Kennicott, do Washington Post, afirmou há pouco que se sente “mais livre para gostar das coisas sem pedir permissão” em função da pandemia. Não lhe parece assustador esse reconhecimento?

Muitos curadores e críticos que nós conhecemos, que tem entre 30 e 50 anos, estão atrelados ao mercado, você sabe disso. Muitas vezes a gente não nomeia, mas sabemos quem são. A gente trabalhava com museus, com entidades. Se eu tenho que recorrer a uma galeria, eu faço isso com um pouco de recato, digamos assim. Porque eu acho que mercado é uma coisa e quem faz uma curadoria tem que ter um outro ponto de vista, procurar museus, procurar colecionadores privados. Agora, muitos curadores ou jovens críticos não vão à casa dos artistas, não vão às casas dos colecionadores. Você pode alegar: não vão porque não conhecem, não têm acesso. Pois é, mas por que a gente tinha? Por que conseguíamos entrar? Vai ver porque eram pessoas que publicavam em jornal e o nome já era conhecido, então eles abriam as portas para vocês. Mas hoje o curador, um jovem crítico, escreve para o catálogo de galerias. Ou seja, ele já escreve para o mercado. Ele não tem o hábito de frequentar o ateliê do artista nem de frequentar a casa do colecionador.

ARTE! – Você comentou que os jovens que não veem muito a história pregressa da arte, do que foi produzido antes deles. Mas a gente também vê muita gente que fica parado no tempo e que não vê o que vê depois.

Eu acho que hoje a gente vê muitos pesquisadores da história da arte que ficam trancados no seu gabinete fazendo mestrado, doutorado, pós-doutorado, livre-docência, que só se preocupam com a titulação para poder galgar uma garantia de um concurso para poder se firmar na universidade ou o que quer que seja.  Mas eu acho que eles não vão ao ateliê do artista. Eles não saem do seu gabinete. Isso eu também acho criticável. Eu te garanto que os artistas teriam o maior prazer em receber historiadores… tenho certeza.✱

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