Começou no último domingo de outubro pela manhã, por volta das dez horas e só terminaria no finzinho da terça-feira. Praticamente três dias. A cidade nunca mais seria a mesma. Até hoje o povo só fala nisso.
Quanto a
analisar meteorologicamente o fenômeno, deixo o espaço a especialistas no
assunto. Pelas declarações da Köppen e Geiger uma frente (muito) fria teria
vindo direto do Polo Norte e se chocou com outra vindo do Pacífico passando por
cima dos Andes. Pedindo perdão pela total falta de vocabulário técnico
adequado.
O fato é que
o frio apareceu assim, do nada, apesar do sol já forte. Uma imensa nuvem obscureceu,
esmagou a cidade em menos de dez minutos. Quem andava na rua, a caminho da
missa ou do mercadinho, sem o mínimo agasalho, não teve como se esconder do
vento beirando os dois graus negativos.
Da escuridão
celestial leves gotas de chuva caíram dançando antes de desaparecer no asfalto.
Em pouco tempo elas se fizeram maiores e mais pesadas, sem, porém, machucar
como pedras de granizo. De repente alguém gritou; “É neve! É neve! ”...
A maior
parte de Salvador receberia em duas horas o equivalente a cinquenta centímetros
de altura de neve. Os jornalistas de todos os canais de televisão e de todos os
jornais, saíram adoidados a documentar o momento surreal. Os fotógrafos profissionais
e os amadores, qualquer cidadão dono de celular, pelas janelas dos ônibus,
pelas sacadas do casario registravam a maravilhosa colcha branca, uns acreditando
se tratar de alguma mensagem divina, outros, advertência contra as agressões à
natureza.
Pelo meio
dia, o sol reapareceu, mas o frio continuou. Abriram-se armários e gavetas à
procura de meias mais grossas, calçados fechados, botas e pulôveres de lã.
Mas... e aqueles que nunca tiveram que se proteger do frio? Portas e janelas
fechadas, o jeito era todos se refugiarem na cozinha e ligar o fogão. Fraca
defesa contra a nova praga. Nos bairros mais abastados, multidões foram
invadindo os centros comerciais onde os 22 graus de ar condicionado eram quase quentura.
Pelo mesmo motivo, formaram-se longas filas para entrar nos cinemas.
Ao cair da
noite, a neve voltou, agora com mais força e não pararia por muitas horas. Nos
hotéis, clientes reclamavam da falta de previdência da administração por nunca
ter instalado calefação. Panelões de água fervendo eram colocados nos quartos,
mas a água esfriava em pouco tempo. Os turistas telefonavam irritados para a
recepção exigindo solução imediata. Nos hospitais e casas de repouso, o pânico tomou
conta dos médicos, enfermeiros e assistentes. Como explicar aos doentes e
idosos que não havia como protegê-los do sopro mortal?
Na manhã da
segunda-feira, o céu se fez mais ameno, chegando ao azul, mas as ruas
continuavam intransitáveis pelo acúmulo da neve agora solidificada. No Largo do
Papagaio, crianças fizeram um boneco de quase dois metros de altura. Na ladeira
da Barra uns jovens daquela classe remediada que viaja a Bariloche ou Aspen,
sacaram esquis de debaixo da cama e deslizaram desde o Largo da Vitória até o
Porto. Um deles acabou quebrando a clavícula. Nos subúrbios morreram sete
pessoas, e vinte e três nos hospitais. Isto é sem contar gatos e cães vadios.
Nunca o
soteropolitano bebera tanta cachaça, whisky, tequila e vodca. Iria nevar ainda
por várias vezes até o pôr-do-sol da terça-feira, quando a nuvem de frio
desapareceu com a mesma velocidade que tinha chegado. Ao derreter, com todas as
bocas-de-lobo entupidas, a neve alagou a avenida Centenário, o Comércio e o
Bonfim. Dois bêbados morreram afogados.
ALBERTO C. LISBOA
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