sábado, 9 de janeiro de 2021

A NUVEM






Começou no último domingo de outubro pela manhã, por volta das dez horas e só terminaria no finzinho da terça-feira. Praticamente três dias. A cidade nunca mais seria a mesma. Até hoje o povo só fala nisso.

Quanto a analisar meteorologicamente o fenômeno, deixo o espaço a especialistas no assunto. Pelas declarações da Köppen e Geiger uma frente (muito) fria teria vindo direto do Polo Norte e se chocou com outra vindo do Pacífico passando por cima dos Andes. Pedindo perdão pela total falta de vocabulário técnico adequado.

O fato é que o frio apareceu assim, do nada, apesar do sol já forte. Uma imensa nuvem obscureceu, esmagou a cidade em menos de dez minutos. Quem andava na rua, a caminho da missa ou do mercadinho, sem o mínimo agasalho, não teve como se esconder do vento beirando os dois graus negativos.

Da escuridão celestial leves gotas de chuva caíram dançando antes de desaparecer no asfalto. Em pouco tempo elas se fizeram maiores e mais pesadas, sem, porém, machucar como pedras de granizo. De repente alguém gritou; “É neve! É neve! ”...

A maior parte de Salvador receberia em duas horas o equivalente a cinquenta centímetros de altura de neve. Os jornalistas de todos os canais de televisão e de todos os jornais, saíram adoidados a documentar o momento surreal. Os fotógrafos profissionais e os amadores, qualquer cidadão dono de celular, pelas janelas dos ônibus, pelas sacadas do casario registravam a maravilhosa colcha branca, uns acreditando se tratar de alguma mensagem divina, outros, advertência contra as agressões à natureza.

Pelo meio dia, o sol reapareceu, mas o frio continuou. Abriram-se armários e gavetas à procura de meias mais grossas, calçados fechados, botas e pulôveres de lã. Mas... e aqueles que nunca tiveram que se proteger do frio? Portas e janelas fechadas, o jeito era todos se refugiarem na cozinha e ligar o fogão. Fraca defesa contra a nova praga. Nos bairros mais abastados, multidões foram invadindo os centros comerciais onde os 22 graus de ar condicionado eram quase quentura. Pelo mesmo motivo, formaram-se longas filas para entrar nos cinemas.

Ao cair da noite, a neve voltou, agora com mais força e não pararia por muitas horas. Nos hotéis, clientes reclamavam da falta de previdência da administração por nunca ter instalado calefação. Panelões de água fervendo eram colocados nos quartos, mas a água esfriava em pouco tempo. Os turistas telefonavam irritados para a recepção exigindo solução imediata. Nos hospitais e casas de repouso, o pânico tomou conta dos médicos, enfermeiros e assistentes. Como explicar aos doentes e idosos que não havia como protegê-los do sopro mortal?

Na manhã da segunda-feira, o céu se fez mais ameno, chegando ao azul, mas as ruas continuavam intransitáveis pelo acúmulo da neve agora solidificada. No Largo do Papagaio, crianças fizeram um boneco de quase dois metros de altura. Na ladeira da Barra uns jovens daquela classe remediada que viaja a Bariloche ou Aspen, sacaram esquis de debaixo da cama e deslizaram desde o Largo da Vitória até o Porto. Um deles acabou quebrando a clavícula. Nos subúrbios morreram sete pessoas, e vinte e três nos hospitais. Isto é sem contar gatos e cães vadios.

Nunca o soteropolitano bebera tanta cachaça, whisky, tequila e vodca. Iria nevar ainda por várias vezes até o pôr-do-sol da terça-feira, quando a nuvem de frio desapareceu com a mesma velocidade que tinha chegado. Ao derreter, com todas as bocas-de-lobo entupidas, a neve alagou a avenida Centenário, o Comércio e o Bonfim. Dois bêbados morreram afogados.

ALBERTO C. LISBOA

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