Uma onda de retrocessos e tormentas no litoral brasileiro
A zona costeira e marinha brasileira pode ser considerada como um dos maiores patrimônios da humanidade. Com mais de 8.600 quilômetros de litoral e 4,5 milhões quilômetros quadrados de mar territorial, a nossa “Amazônia Azul” abriga paisagens diversas, incluindo ecossistemas vulneráveis como restingas, manguezais, costões rochosos, praias arenosas, estuários, recifes rochosos e coralinos, banco de rodolitos, além de regiões de mar aberto e abissais.
A complexa e vibrante biodiversidade costeira e marinha, a história milenar deixada por povos ancestrais e os importantes centros históricos, culturais e arquitetônicos estabelecidos nos últimos cinco séculos fazem dessa região um dos principais portfólios das diversidades biológica e cultural brasileiras.
Associada a essa relevância natural e cultural, a zona costeira é um local de grande movimentação econômica, sobretudo por setores como o turismo, óleo e gás, atividades portuárias, logística, construção civil e imobiliária, pesca artesanal e industrial. A economia associada ao mar gera um PIB em torno de R$ 1 trilhão e emprega mais de 19 milhões de pessoas. As potencialidades e oportunidades existentes na região vão muito além desses valores e exigem gestão e governança comprometidos com a sustentabilidade ambiental, o que não tem acontecido nos últimos anos.
O ano de 2020 iniciou com os rescaldos do pior desastre ambiental do litoral brasileiro: o derramamento de óleo cru, ocorrido em 2019, que atingiu os estados do Norte, Nordeste e Sudeste e afetou mais de 55 unidades de conservação. Estima-se que, no mínimo, 5 mil toneladas de óleo tenham sido espalhadas, afetando serviços ecossistêmicos, impactando a economia regional e o bem-estar de pescadores e comunidades tradicionais. Quase 18 meses decorridos do acidente, ainda não se sabem a origem e os responsáveis pelo desastre, indicando que será mais uma violência ambiental que ficará no esquecimento da sociedade brasileira.
Unidades de conservação sob ameaça
Embora a gestão da zona costeira seja prevista pelo Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e pelos instrumentos a ele associados que ordenam o território, são ainda incipientes as iniciativas de implementação, tornando a região vulnerável às forças políticas e econômicas, cujos interesses são diversos da preservação.
Além dos problemas de gestão do território, desde 2018 não são criadas novas unidades de conservação e, as existentes, estão sendo ameaçadas, por corte de recursos, mudanças no quadro de funcionários e alteração dos seus limites e categorias, gerando inseguranças no arcabouço normativo. Ameaças pairam sobre a Estação Ecológica de Tamoios (RJ), os parques nacionais da Lagoa do Peixe (RS) e de Fernando de Noronha (PE). Por fim, a Embratur anunciou planos de realizar naufrágio de embarcações para promover o turismo de mergulho no arquipélago.
O turismo, quando realizado de forma sustentável e precedido de estudos sobre possíveis impactos, é uma fonte importante de renda. No entanto, não é o caso dessas iniciativas desconectadas de políticas já estabelecidas e sem respaldo técnico. Ainda em Fernando de Noronha, o Ministério do Meio Ambiente assinou termo autorizando a pesca da sardinha. Embora o termo tenha liberado apenas a pesca artesanal, existem dúvidas sobre os limites estabelecidos e a viabilidade dessa atividade por pressionar uma espécie que já sofre sobrepesca.
Restingas e manguezais
A costa amazônica tem características únicas, abrigando as maiores extensões contínuas e preservadas de manguezais do planeta e um dos mais importantes recifes mesofóticos (de profundidade) do Atlântico Sul, o Grande Recife da Amazônia. Esses ecossistemas estão frequentemente na mira da exploração mineral de inúmeras empresas que prospectam a região.
Por exemplo, neste ano, a petroleira francesa Total tentou aprovar licenciamento ambiental para exploração na Foz do Amazonas, baseada em estudos falhos. Embora, num primeiro momento, a empresa tenha desistido de prosseguir no licenciamento, os blocos de exploração foram repassados para a Petrobras. Essa situação causa grande instabilidade para a região, pois os benefícios econômicos trazidos pela exploração do petróleo contrastam com as grandes perdas em biodiversidade de um sistema complexo e ainda pouco conhecido.
As restingas e os manguezais da costa brasileira foram também vítimas de uma das maiores polêmicas ambientais do ano. No final de setembro, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), órgão que fora desidratado de sua representatividade social já no início do atual governo, revogou quatro de suas resoluções.
Áreas de Preservação Permanente
As resoluções 302 e 303 de 2002 tratam das definições de parâmetros e limites das Áreas de Preservação Permanente (APPs), salvaguardadas pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa de 2012. Como APPs, manguezais e restingas desempenham papéis socioecológicos importantes, como proteção da linha de costa contra eventos climáticos extremos e provisão de recursos pesqueiros. As resoluções eram ferramentas essenciais para a aplicação da lei. Uma disputa jurídica iniciou-se logo após as revogações, envolvendo tribunais estaduais e o Supremo Tribunal Federal (STF), levando à suspensão da revogação.
Os processos relativos às revogações e à legitimidade das alterações no Conama ainda seguirão no STF. Enquanto isso, a proteção das restingas e manguezais permanece instável e pouco segura.Se não bastassem os desastres e retrocessos, tampouco houve avanços. Há mais de dez anos não existe monitoramento da pesca no litoral brasileiro, o que faz com que a atividade pesqueira seja feita às cegas e sem planejamento. Os órgãos colegiados voltados à gestão costeira foram, em sua maioria, extintos ou tiveram sua atuação paralisada.
Um exemplo é o Grupo de Integração do Gerenciamento Costeiro, que reúne órgãos governamentais e não-governamentais, e que desde 2019 não se reúne, inclusive para tratar da revisão do Plano de Ação Federal para a Zona Costeira, um instrumento norteador de gestão territorial em escala nacional. Mesmo as áreas marinhas protegidas, que cobrem 26% das águas jurisdicionais brasileiras, tiveram grandes problemas de gestão, pela falta de investimento financeiro e em recursos humanos. Além disso, o gerenciamento de problemas crônicos como a contaminação por esgoto e atividades de base, não têm sido levados a sério no país já há muitas décadas.
Década da Ciência Oceânica
Manter os ecossistemas costeiros saudáveis é garantir saúde humana e aumentar a resiliência a desastres tais como os acidentes com óleo. Preocupações como essas têm passado longe das agendas dos governantes, o que deixa a população brasileira numa deriva eterna e sem saber onde está a bóia para se agarrar.
Mesmo nessas circunstâncias, uma esperança para a zona costeira e mar brasileiros está no período que se inicia em 2021: a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. Lançada pela Organização das Nações Unidas a fim de cumprir um dos compromissos firmados na Agenda 2030, a iniciativa propõe a realização de eventos, cursos e oficinas com foco no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 14 e suas interdependências com os demais ODS.
Algumas atividades preparatórias já ocorreram este ano e a perspectiva é que seja jogada luz nos problemas e conflitos costeiros e oceânicos, visando alertar a sociedade civil sobre a importância desses sistemas. Se as décadas passadas foram de tormentas, esperamos bons ventos para o futuro.
* A Coalizão Ciência e Sociedade congrega cientistas de instituições ensino e pesquisa em todas as regiões do Brasil.
Na imagem acima, aves migratórias no Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul. Foto: João Batista Cardozo/ICMBio/Divulgação.
Leia também da Coalizão Ciência e Sociedade:
Nenhum comentário:
Postar um comentário