sábado, 12 de dezembro de 2020

NAVEGAR É PRECISO?

 


Muito mais tarde, quando eles já tinham zarpado, soube que era um casal non grato em outras partes do mundo. Um boato insistente falava que vinham fugidos da África perseguidos pela polícia por tráfico de armas. Mas, como a grande maioria dos escroques, eram comunicativos, sorridentes, de bem com a vida. Com seu bonito e nem tão pequeno veleiro tinham atravessado o Atlântico desde as costas do Senegal até nosso porto seguro. Ela, que chamaremos de Aline, era francesa, fina, entrando nos quarenta. O Gregory, iugoslavo, atlético - um colosso - poucos anos mais velho. Os primeiros contatos foram na minha galeria do Mercado Modelo, por onde muitos navegadores costumavam aportar. A gente do mar me fascinava. Viver livre entre águas e céus, sóis, luas e estrelas, ler, descobrir ilhas e embocaduras, longe das rotinas, dos ruídos e das convenções... Como não invejar tal escolha?

Um dia me convidaram a ir até Itaparica. Navegar, para mim, não é preciso. Mas à baia quem resiste? Ancoramos na Ponta de Areia. Após um passeio em mar calmo, a redentora visão de um tabuleiro de baiana. Acarajés dançavam na fritura. Encomendamos três. Para meu constrangimento, o Gregory insistiu para ter um desconto. A baiana estranhou, mas recusou com firmeza. Levando a negativa como afronta pessoal, o homem jogou o dinheiro com raiva. Ao sentar numa mesa, Aline fez um comentário desaprovador sobre o acontecido. De repente, o homem se levanta furioso e dá um forte tapa na cara da esposa. Fiquei petrificado. Nunca tinha assistido a semelhante cena. Nada podia fazer. Impossível ir embora: minha roupa e dinheiro tinham ficado no barco. Voltamos no mais total silêncio até a rampa do mercado. Nunca mais os tornei a ver.

Mas Salvador é uma aldeia e meu esconderijo no Mercado Modelo era o centro de mil informações e fofocas entre velejadores. Quase agência da Bahiatursa. Soube que o homem tinha trocado armas contra esmeraldas com um espertalhão do centro histórico. Voltou para se queixar que as pedras não passavam de pedaços de vidro. O outro não se abalou: “As armas que você meu deu em troca não funcionam, estão ambas quebradas. ”  Nem por isso brigaram. O agressor recuperou suas pistolas e o comerciante suas esmeraldas. O casal ainda ficaria por vários dias na Bahia.

Com o passar do tempo, conclui que, por amplo que seja o horizonte, a maioria dos navegantes continua com espírito rotineiro e tacanho. Prova são os livros e CDs que passam de bordo em bordo. Romances ocos, filosofias baratas, musiquetas do momento. Trocaram o apartamento da cidade grande por 20m2 de aço flutuante, mas a cabeça continuava limitada, burguesinha.

Por mais longe que você for, nunca fugirá de si mesmo.

Dimitri Ganzelevitch                                                                                         A Tarde, 12/12/20

 

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