sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

AS GARÇAS DO PRINCIPADO DE LA GLORIETA

 


No meio dos Andes, a quase três mil metros de altura, Sucre – que também se chama Charcas, La Plata e Cuchisaca -  é uma cidade tão branca e sensual como uma ilha grega. Lá você esquecerá sua condição redutora de turista para simplesmente se tornar anônimo bípede descansando na Plaza de Armas ou comprando frutas no mercado municipal. Difícil é não sucumbir ao charme desta cidade.

Mas conseguimos, Claudine, velha cúmplice de tantas viagens por quatro continentes, e eu, escapar do feitiço por poucas horas. O micro 4, lento que nem cágado e mais cheio que o trem das onze, nos deixaria, cinco quilômetros mais adiante, no portão do Castillo de los Príncipes de la Glorieta.

Após um pomposo gradil rendilhado, penetramos no reinado da mais absoluta fantasia. Desde o título nobiliário, dourado a purpurina, atribuído por um papa no final do século XIX ao dono de minas de prata e financiador da guerra do Pacífico, até a bizarra mansão avermelhada de estilo árabo-gótico-russo-bizantino-renascente, tudo parecia cenário de teatro mambembe. Algures entre o kitsch e o cafona, o conjunto é salvo pela sua própria incoerência. Escadas, torres, pátios, salões, corredores e varandas se sucedem sem nexo aparente. A decadência geral - vidros quebrados, paredes mofadas -  acaba dando alma ao conjunto.

No parque abandonado e invadido pelo mato, crianças jogavam bola. Três alemães quarentões nos pediram para tirar o retrato, polegares em evidência. Abriu-se a porta principal do estranho castelo. Uma revoada de jovens, altas e lindas moças, cabelo solto, todas vestidas de longo preto, desceu a escada monumental correndo, rindo e agitando os braços cobertos por amplos xales coloridos. Pareciam frágeis garças dançando na luz do fim de tarde. Ainda as encontraríamos, agora num salão azul com janelas mouriscas, vestidas de leve algodão branco bordado e imensos chapéus de palha. O espaço se transformara em exótica gaiola. Sem poder definir a origem, um tambor distante batia uma cadência desconhecida. Se algum Proust latino americano estivesse observando, teríamos vinte páginas antológicas sobre estas jeunes filles en fleur. Pareciam flutuar, atemporais. Seus gestos, seus risos, seriam criações espirituais de um Fokine subtropical?

Voltamos silenciosos a Sucre, sempre naquele micro 4, com os três alemães, câmeras penduradas no pescoço.

Certos momentos marcam uma viagem, senão uma vida. Não precisa ser a visão da obra-prima de artista genial ou um baile no castelo de Versalhes. Basta a lembrança do cheiro da terra após a tormenta, a folha amarelada caindo lentamente de uma árvore, o sorriso calmo de uma velha senhora para que, de repente, nos invada uma prazerosa sensação de plenitude.

Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, 26/12/20

 

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