No meio dos Andes, a quase três mil metros de altura, Sucre – que também se chama Charcas, La Plata e Cuchisaca - é uma cidade tão branca e sensual como uma ilha grega. Lá você esquecerá sua condição redutora de turista para simplesmente se tornar anônimo bípede descansando na Plaza de Armas ou comprando frutas no mercado municipal. Difícil é não sucumbir ao charme desta cidade.
Mas
conseguimos, Claudine, velha cúmplice de tantas viagens por quatro continentes,
e eu, escapar do feitiço por poucas horas. O micro 4, lento que nem cágado e
mais cheio que o trem das onze, nos deixaria, cinco quilômetros mais adiante, no
portão do Castillo de los Príncipes de la Glorieta.
Após um
pomposo gradil rendilhado, penetramos no reinado da mais absoluta fantasia. Desde
o título nobiliário, dourado a purpurina, atribuído por um papa no final do
século XIX ao dono de minas de prata e financiador da guerra do Pacífico, até a
bizarra mansão avermelhada de estilo árabo-gótico-russo-bizantino-renascente,
tudo parecia cenário de teatro mambembe. Algures entre o kitsch e o cafona, o
conjunto é salvo pela sua própria incoerência. Escadas, torres, pátios, salões,
corredores e varandas se sucedem sem nexo aparente. A decadência geral - vidros
quebrados, paredes mofadas - acaba dando
alma ao conjunto.
No parque
abandonado e invadido pelo mato, crianças jogavam bola. Três alemães quarentões
nos pediram para tirar o retrato, polegares em evidência. Abriu-se a porta
principal do estranho castelo. Uma revoada de jovens, altas e lindas moças, cabelo
solto, todas vestidas de longo preto, desceu a escada monumental correndo,
rindo e agitando os braços cobertos por amplos xales coloridos. Pareciam
frágeis garças dançando na luz do fim de tarde. Ainda as encontraríamos, agora
num salão azul com janelas mouriscas, vestidas de leve algodão branco bordado e
imensos chapéus de palha. O espaço se transformara em exótica gaiola. Sem poder
definir a origem, um tambor distante batia uma cadência desconhecida. Se algum
Proust latino americano estivesse observando, teríamos vinte páginas
antológicas sobre estas jeunes filles en
fleur. Pareciam flutuar, atemporais. Seus gestos, seus risos, seriam criações
espirituais de um Fokine subtropical?
Voltamos
silenciosos a Sucre, sempre naquele micro 4, com os três alemães, câmeras
penduradas no pescoço.
Certos
momentos marcam uma viagem, senão uma vida. Não precisa ser a visão da obra-prima
de artista genial ou um baile no castelo de Versalhes. Basta a lembrança do
cheiro da terra após a tormenta, a folha amarelada caindo lentamente de uma
árvore, o sorriso calmo de uma velha senhora para que, de repente, nos invada
uma prazerosa sensação de plenitude.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, 26/12/20
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