sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

LIVROS NA JANELA

 



Em março do ano passado, de repente o mundo se limitou às quatro paredes de minha casa, felizmente ampla e luminosa, sem contar uma vista privilegiada sobre a baía de todas as ilhas e todos os cargueiros.

Subindo até o sótão descobri pilhas de livros deixados por amigos viajantes ou sobras de feiras organizadas em outros tempos. Decidi fazer uma campanha solitária pela leitura. Escrito num papelão: “Pegue um livro. Deixe um livro” no alto da grade de proteção de uma janela no térreo, usei os espaços restantes com livros. Por sorte, a janela é protegida da chuva pela sacada do andar superior. É provável que a iniciativa festeje seu primeiro aniversário, ainda solitariamente, neste próximo mês de março.

Experiência enriquecedora. Pela janela passaram muitos autores famosos e outros menos reconhecidos. Desde o Romeu e Julieta de Shakespeare, traduzido para o português, até a obra quase completa de Machado de Assis. Jubiabá de Jorge Amado, em inglês, A Última tentação de Marx, de Armando Avena, The Prince and the Pauper de Mark Twain, O Mandato das Águas de Fernando Gabeira, Un crime de Georges Bernanos, Os Melhores Contos de Eça de Queiroz e um exército de publicações sobre estatísticas, contabilidade, informática, quadrinhos, palavras cruzadas, dietética e fórmulas milagrosas para chegar à felicidade absoluta. Vez ou outra tinha que evitar a lavagem espiritual por algumas daquelas igrejas evangélicas sugadoras de dízimos.

Sejamos honestos: para dez livros retirados, só uns quatro eram deixados na janela. Cheguei a desanimar mais de uma vez vendo a janela quase vazia até receber novas doações.

O aspecto altamente lucrativo desta iniciativa foi a de encontrar livros que desejava ler ou reler. Me encantei com A Nova Mulher de Marina Colasanti e fiquei deprimido com Dom Casmurro. The Curious Case of Benjamin Button me fez descobrir a riqueza do vocabulário de Scott Fizgerald de quem só conhecia The Great Gatsby. Hoje me preocupa a pilha ainda por ler que está em trânsito sobre minha mesa de trabalho.

Uma tarde, desci para verificar o movimento da janela e me surpreendi ao constatar que não sobrava nenhum livro. Um vizinho, passeando seu cão, esclareceu o mistério. Tinha notado um homem metendo todos os livros numa sacola de pano. O dono do cão se aproximou: “Amigo, não pode pegar todos. E tem que deixar algum. ” O homem devolveu de malgrado a maioria dos livros, sussurrando algo sobre venda. Mal o vizinho se afastou, voltou para pegar apressadamente os livros. Perguntei qual era o aspecto do homem. “É um velho, magro, pobremente vestido...”

Não tinha previsto este desdobramento. Os livros podiam, além do conhecimento, contribuir para a sobrevivência de um pobre velho.

                                                                                        Dimitri Ganzelevitch                                                                                     A Tarde, Sábado 6 de fevereiro 2021

 

 

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