Em março do
ano passado, de repente o mundo se limitou às quatro paredes de minha casa,
felizmente ampla e luminosa, sem contar uma vista privilegiada sobre a baía de
todas as ilhas e todos os cargueiros.
Subindo até
o sótão descobri pilhas de livros deixados por amigos viajantes ou sobras de
feiras organizadas em outros tempos. Decidi fazer uma campanha solitária pela
leitura. Escrito num papelão: “Pegue um livro. Deixe um livro” no alto da grade
de proteção de uma janela no térreo, usei os espaços restantes com livros. Por
sorte, a janela é protegida da chuva pela sacada do andar superior. É provável
que a iniciativa festeje seu primeiro aniversário, ainda solitariamente, neste
próximo mês de março.
Experiência
enriquecedora. Pela janela passaram muitos autores famosos e outros menos
reconhecidos. Desde o Romeu e Julieta de Shakespeare, traduzido para o
português, até a obra quase completa de Machado de Assis. Jubiabá de Jorge
Amado, em inglês, A Última tentação de Marx, de Armando Avena, The Prince and
the Pauper de Mark Twain, O Mandato das Águas de Fernando Gabeira, Un crime de
Georges Bernanos, Os Melhores Contos de Eça de Queiroz e um exército de
publicações sobre estatísticas, contabilidade, informática, quadrinhos,
palavras cruzadas, dietética e fórmulas milagrosas para chegar à felicidade absoluta.
Vez ou outra tinha que evitar a lavagem espiritual por algumas daquelas igrejas
evangélicas sugadoras de dízimos.
Sejamos
honestos: para dez livros retirados, só uns quatro eram deixados na janela.
Cheguei a desanimar mais de uma vez vendo a janela quase vazia até receber
novas doações.
O aspecto
altamente lucrativo desta iniciativa foi a de encontrar livros que desejava ler
ou reler. Me encantei com A Nova Mulher de Marina Colasanti e fiquei deprimido
com Dom Casmurro. The Curious Case of Benjamin Button me fez descobrir a
riqueza do vocabulário de Scott Fizgerald de quem só conhecia The Great Gatsby.
Hoje me preocupa a pilha ainda por ler que está em trânsito sobre minha mesa de
trabalho.
Uma tarde,
desci para verificar o movimento da janela e me surpreendi ao constatar que não
sobrava nenhum livro. Um vizinho, passeando seu cão, esclareceu o mistério.
Tinha notado um homem metendo todos os livros numa sacola de pano. O dono do
cão se aproximou: “Amigo, não pode pegar todos. E tem que deixar algum. ” O
homem devolveu de malgrado a maioria dos livros, sussurrando algo sobre venda.
Mal o vizinho se afastou, voltou para pegar apressadamente os livros. Perguntei
qual era o aspecto do homem. “É um velho, magro, pobremente vestido...”
Não tinha
previsto este desdobramento. Os livros podiam, além do conhecimento, contribuir
para a sobrevivência de um pobre velho.
Dimitri Ganzelevitch A Tarde, Sábado 6 de fevereiro 2021
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