segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

CINECELULAR



José Umberto *
Fellini provocou um pouco depois da queda do muro de Berlim: “A televisão é um eletrodoméstico.” Essa entrevista irônica antecedia a chegada da internet. O conjunto de transformações tecnológicas prepara a passagem abrupta e radical da mecânica analógica para o dígito binário digital. Perpassa assim o campo cíclico de oscilações como rolo compressor duma sinfônica da metáfora em mutações.
O fotograma é substituído por bits enquanto os templos profanos de massa das salas de exibição convencionais são transferidos para as salas de estar domésticas. Um notebook passa a gênero de primeira necessidade, como a geladeira. Passamos a assistir a uma série, a uma live ou a um filme transitando no metrô ou mesmo sentado absorto no vaso sanitário. A ritualística do espectador na coletiva sala de exibição se mobiliza para a sala de estar da residência privada do telespectador. Ocorrendo uma fratura de posição diante do entretenimento, do conhecimento e da informação.
O cinema assimila as rupturas profundas das mudanças estruturais na economia de mercado contemporânea. Os sofisticados efeitos especiais se compactuam aos games na antevéspera da futurista holografia no cyberspace sintonizados a um compasso de tempo e de memória acelerado e expansivo. Acoplado, simultaneamente, a um espaço concentrado e comprimido. Essa nova circunstância expressa a incerteza e estimula a distopia, ensaiando o território opaco que afunila a patologia com a fenomenologia.
A “sétima arte” (símbolo de contato social) confunde-se hermeneuticamente com o audiovisual, paradigma de consumo de âmbito mais privado. Há vinte anos são introduzidas as plataformas de streaming (modalidades de distribuição) que atua em rede na internet para disponibilizar multimídia. Essa difusão em pouco tempo torna-se mainstream. Com a pandemia da covid-19 o streaming cai como uma luva de demanda: urgência de isolamento social e negação de ajuntamento de pessoas.
Podemos afirmar que ingressamos na potência do invisível. A indeterminação do vírus expõe o corpo a uma situação de mutante vulnerável enquanto as subjetividades arranham a teia do imprevisível. No intervalo, todos passam a ser vigiado no tablado do big brother. Arranhamos, desse modo, as filigranas do totalitarismo onde o desconhecido passa à condição de sujeito. Uma travessia de encontro marcado da semiologia com a neurociência. A curva da era da nanotecnologia abraça o éon da inteligência artificial. No subterrâneo, movimentam-se a regressão e a prosperidade. A invisibilidade do vírus penetra na caverna da esfinge e gera o monstro do medo, indecifrável na sua gélida imprevisão.
O estado de natureza do momento integra o antropoceno que por sua vez, no interior da flora e fauna, o nosso instante está suspenso no antropomórfico. O cinema possibilita testemunharmos, na superfície da cena, a comunidade regida pelo controle de voyeurismo em plantão contínuo. Uma humanidade que preda o meio ambiente enquanto os bichos invadem as cidades sub-repticiamente: hibridação ecológica. O orgânico ascende ao topo de privilégio sanitário e a pulsão de morte ganha celebridade nos interstícios desse contorcionismo eriçado ao desfile das vaidades fracassadas, à medida que o arco arqueia na arcada contra a luz da impermanência.
Os sonhos não serão mais os mesmos. Embora o cinema continue vazando pelas suas técnicas de representação os fragmentos oníricos em jatos de luz e sombra. Nessa seara, desconfia- se que o cinema (por reflexo) absorverá o atual surto infeccioso e realizará sua síntese pós-pandemia. Como se trata de uma língua universal, patrimônio de sensibilidade, sua trajetória é imprevisível. As mudanças, transitando em novas configurações, permitirá ao cinema depurar a sua inocência perdida.
Insinua-se vivermos em espanto numa catedral gótica. Se antes o atrito era mecânico, agora é quântico: o invisível identifica o vírus ao pixel. Ou seja, a imagem digital e a infecção viral possuem o absurdo da convergência. Conquanto esta produz a aberração da morbidade, aquela busca dar sentido ao real. O estado de exceção (guerra) em luta com o estado de expressão (invenção). Uma transição inserida na onda da bolha que revela, de uma vez, a precariedade do existir. É possível sair dela e retornar à “vida normal” de antes? Ou estaremos na iminência de um esvaziamento?
*cineasta e escritor
TRIBUNA DA BAHIA, 01/02/2021

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