sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

NOTAS DE MEU CADERNO DE VIAGEM

 


Gosto de programar viagens a partir de algum evento específico. Etiópia na Semana Santa ou os festejos de Santo Antônio em Lisboa. Após ter descoberto no Memorial da América Latina as pipas do Dia dos Finados nos cemitérios da Guatemala, desembarquei em Antígua. Já contei em outras páginas o surreal rito das gigantescas arraias de Sacatepequez.

No princípio do milénio o país ainda sofria consequências da colonização selvagem da United Fruit – a família Bush entre seus maiores acionistas - que desembocou numa longa guerra civil.

Antígua, tombada pela Unesco em 1979. Apesar da beleza de seus monumentos e do encanto de suas ruas, poderia ser bem mais cuidada. Telhados de zinco, igrejas precisando de reparos urgentes e construções ilegais na calada da noite.Triste realidade de grande parte da América Latina, incluindo o centro histórico de Salvador.

Fui conversar com o Iphan local. A Dra. Jesica me atendeu gentilmente, pintando um quadro desanimador das limitações do escritório. Todo monumento ou sítio declarado patrimônio da humanidade será, portanto meu. E seu também. Você é dono de um pedaço da Torre Eiffel e do Tadj Mahal. Nunca hesite, mesmo que não seja da área, em reclamar junto às autoridades competentes que são pagas por nós, cidadãos e comunidades, para este propósito: cuidar com zelo de nosso patrimônio.

Dentro do roteiro escolhido, precisei de dois ou três ônibus imundos e carcomidos para chegar a Panajachel, estação balneária à beira do lago Atitlan. Decepção. Na manhã seguinte embarquei numa lancha lotada de índios sorridentes para descobrir Santa Cruz, um pedaço de paraíso. O Hotel Arca de Noé afogado em árvores e flores, teria sido inventado para minha total e absoluta felicidade? O quarto decorado com uma imensa janela sobre as águas calmas do lago, esqueci Monet e Gauguin.

No final da tarde, o sol desaparecendo por trás de três vulcões deu um espetáculo exageradamente barroco. Alan, fotógrafo da capital, me explicou que naquela época do ano, um fenômeno químico entre a umidade do lago, o calor dos vulcões e a posição do sol costumava produzir esta festa. Logo resolvi ficar três noites.

Gerador apagado, o jantar foi servido à luz de velas numa longa mesa de madeira maciça. Conversa geral, amável e banal. Mergulho com prazer na minha sopa. Vinho tinto razoável, pão caseiro. Mas nada, mesmo no melhor dos mundos, nada é perfeito. Como a conversa desviou? De repente um americano sentado à minha frente começou a falar da recente eleição de Bush. Me foi impossível segurar minha raiva. Explodi. Quase aos berros proibi ao coitado de falar de política dos EUA naquela mesa.

O silêncio que seguiu meu grito durou a eternidade de muitos segundos.

 Dimitri Ganzelevitch

A Tarde - 20/02/21

Um comentário:

  1. Belo texto, e com um final como um por de sol para poucos assistirem, e. se quiserem ouvirem também, parabéns.

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