Awurê, o quilombo urbano que atrai público à Zona Norte do Rio.
Há dois anos, quatro amigos se reuniam para produzir uma roda que reafricanizasse o samba, tão embranquecido ao longo de sua história, e, mais do que isso, um evento que fosse referência de cultura negra.
Assim, o Awurê — termo iorubá que significa um desejo de boa sorte — ganhava a cara que tem hoje. Se no início foi difícil e eles chegaram a ter público de apenas 20 pessoas, hoje a roda, que é mensal, atrai de 600 a 700 de diversos cantos da cidade e até de outros estados, além de se apresentar em outros lugares do Rio. A próxima edição acontece este domingo, no Quintal de Madureira. "A gente começou com a ideia mesmo de criar um lugar de aquilombamento, onde pudesse falar de religiosidade, pertencimento, da cultura negra e das influências que a gente sabe que são de origem negra, mas durante anos tentaram fazer com que isso não fosse notório para nós", lembra a cantora Fabíola Machado, uma das produtoras.
O evento é realizado por quatro produtores: além de Fabíola, que também é cantora da roda do Moça Prosa, estão por trás dele Anderson Quack, que também é diretor artístico do Awurê, diretor do programa 'Espelho' e fundador da Cufa; Pedro Oliveira, responsável pelo audiovisual, filho do produtor Dom Filó e nome por trás do canal Cultne, que registra a cultura afro-brasileira há mais de 30 anos, e Arifan Júnior, compositor e cantor. "A roda existia antes, mas não tinha essa proposta. A partir de 19 de janeiro de 2018, ela passou a acontecer no Quintal de Madureira, onde a gente decidiu fazer debaixo de uma árvore, por toda a questão religiosa, um ambiente que a gente considera que seja cultural. Porque nós acreditamos que o candomblé, as religiões de matriz africana são mais que uma religiosidade: são uma forma de viver mesmo, de estar se conectando com a África", explica Fabíola.
No caldeirão do Awurê entram ritmos brasileiros como variações do samba, jongo, ijexá, coco, maracatu e toques do candomblé, além de estilos musicais dos países vizinhos, como o candombe e a salsa. "A ideia é reafricanizar o samba, usando como catalisador para isso os tambores e os ritmos afro, sejam do jeje, do ketu, nagô, seja o próprio samba de caboclo aqui do Rio de Janeiro. Os tambores são sagrados para nós", descreve Fabíola. "A gente hoje nem se considera somente uma roda de samba, porque estamos colocando todos os ritmos a que a gente tem acesso, que nos remetem aos nossos sons de África."
A escolha do bairro da Zona Norte para sediar o evento foi estratégica, ela conta. "Madureira respira cultura negra. A gente fez lá para demarcar o nosso Quintal como uma forma de resistência também. Existem outros grupos que fazem trabalhos lá há muitos anos, como o Agbara Dudu, o Samba na Serrinha, o Fuzuê de Aruanda. São iniciativas que preservam a cultura popular", observa. "A gente se soma a esse grito de: 'Ei, estamos aqui fazendo cultura, só precisamos ser vistos.' E hoje conseguimos trazer pessoas da Zona Sul, de Niterói, de outros estados para Madureira.
E, apesar termos um evento itinerante, temos o nosso Quintal para trazer as pessoas para conhecer, aquele lugar onde a gente se reúne para falar de identidade, cultura e religião", diz a cantora. A roda acontece uma vez por mês, sempre começando à tarde. "Aos longos desses anos, a gente entendeu nosso público. Hoje, no Quintal, recebemos mães e pais de santo de vários terreiros do Rio de Janeiro, seja de umbanda ou de.de candomblé. Então a gente não podia fazer um evento tarde da noite, porque tem um público infantil e de senhoras muito grande. Senhoras que esperam uma vez por mês parra estar ali, falando do profano e do sagrado, dentro do respeito com que isso pode ser dividido", analisa ela.
Fabíola, que é ekedi no candomblé há mais de 25 anos, conta que os quatro produtores seguem a religião e sentiam a necessidade de realizar algo onde pudessem cantar sua religiosidade e recordar as raízes negras do samba. "O que a gente precisava, na música, na cultura e na arte em geral, era lembrar as pessoas de que isso é um processo africano. Tudo isso. O samba é um braço da África, assim como o jongo. É importante a gente ter consciência do que está cantando", defende. A ideia é ir na contramão do apagamento da cultura negra no Brasil e fazer com que pessoas negras se reconheçam como tal e valorizem sua história.
"É um projeto de conscientização no qual a gente achou a necessidade de falar sobre essas coisas e também sobre a felicidade de viver uma religião que não seja imposta. Mostrar e dizer que Exu não é diabo, que Iemanjá é preta e é nossa mãe. A gente fala muito que, se a gente tivesse, desde criança, a consciência de que existe no mar uma mãe que guarda, que protege, a nossa relação com a natureza ia ser outra. De saber que uma árvore tem um espírito Assim como os indígenas, o povo iorubá também acredita que as nossas deusas e deuses estão nas árvores", exemplifica Fabíola. Por falar nisso, não à toa a roda do acontece estrategicamente embaixo de uma frondosa mangueira.
"Ela é nosso axé, é ela que nos dá força, a raiz dela está muito ligada à gente. A copa dela nos fortalece e nos protege. Embaixo dela é que acontece nosso canzuá (casa), nosso fortalecimento, nosso reconectar. É como se estivesse fazendo um ciclo, as raízes tocando os nosso pés descalços. A gente faz questão do ambiente estar coberto de folhas, de estar com esse ar de natureza, como se a gente estivesse entrando num terreiro mesmo", conta ela.
E, se hoje o lugar se transformou numa espécie de quilombo urbano, quando começaram eles não faziam a menor ideia de que isso poderia acontecer. Pelo contrário: tinham medo de que o projeto não desse certo. "A gente teve muito prejuízo, essa é verdade, porque ficamos durante um ano construindo essa ideia. Ela já estava formada dentro de nós quatro, a gente já sabia o que queria, o som que queria, a imagem que queria passar, porém as pessoas ainda não conheciam, então não iam. Já aconteceu de fazermos samba para 20, 30 pessoas.
Então, hoje ver o Awurê sendo considerado um quilombo urbano, um lugar de africanização, colocando ali toda essa responsabilidade que isso também traz, para para nós é algo surpreendente. A gente fala que o Awurê tem vida própria, ele está nos conduzindo", filosofa Fabíola.
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