Ela parou defronte
à minha pequena galeria no primeiro andar do Mercado Modelo. Notei a bolsa
pouco convencional, toda bordada, com mil penduricalhos. Cabelo negro farto,
vestida sem sofisticação, entre sessenta e setenta anos. Olhou para a
deliquescente boneca do Eckenberger sentada numa cadeira e deu uma gargalhada:
“Todos los dias veo gente parecida con ella!”.
Estranhei e gostei
do comentário. Iniciamos um diálogo que nos levaria rápido a uma viagem no
tempo e no espaço. Ela era costa-riquenha, pianista e crooner de um conjunto
musical regido pelo marido, saxofonista. Animavam cruzeiros, passando de navio
em navio, mais tempo no mar que na terra. "Pois é... muitas das minhas
passageiras são parecidas com esta. As vezes até mais caricatas".
E você. De onde é?
Sou francês, mas vivo na Bahia tem mais de dez anos. Ah, você é francês!
França... trabalhei muito em Paris nos anos 50...
Olhei para ela com
mais atenção e arrisquei: “Alícia, no bar de La Calavados? ”.
A mulher quase
desmaia. Meu Deus! Como adivinhou? Seus olhos se enchem de emoção. Porque me
lembro muito bem de você, com sua voz rouca a la Nina Simone, no então famoso
estabelecimento, recém aberto, perto da Avenue Georges V. Eu gostava de sua
voz, de seu repertório. Gershwin, Cole Porter, Irvin Berlin...Estudante, em
época de bonança, gostava de ir lá com amigos. O restaurante do primeiro andar
não era para meu bolso nem com certeza tão divertido quanto a fauna que
frequentava o térreo, onde todos iam para ver e serem vistos. Nos sofás que
corriam ao longo das paredes, espremiam-se atores, cantores, fotógrafos e
jornalistas. Modelos de Dior, Fath e Chanel vinham bebericar e fofocar desde a
vizinha Avenue Montaigne.
Com frequência se podia observar a farta cabeleira
loura da deslumbrante
Coccinelle (abra o Google), primeira transexual de fama
internacional que só teria, uma geração mais tarde, uma Roberta Close para
competir em beleza e sensualidade. Em alternância com a pianista-cantora, um
trio mexicano de mariachis, bem caraterísticos com seus imensos sombreros
bordados e negros bigodes.
Alícia acabou
comprando a boneca e me convidou a jantar no navio encorado no porto de
Salvador. Pude assim, ouvindo ela cantar e tocar, mergulhar na Calavados de
meus vinte anos. Durante alguns anos mantivemos o contato por cartas, já que
computadores ainda eram desconhecidos do grande público. O casal cansou de
andar por mares e continentes, comprou uma casinha na Flórida onde a boneca
desrespeitosa teria espaço de destaque numa poltrona da sala.
Um dia o saxofonista silenciou. Poucos meses
depois a pianista deixou de me escrever. Em que sala, em que sótão ou galeria
estará agora a perturbadora boneca?...
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde. Sábado 4 de abril 2020
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