Cada manhã me enfurno no
metrô. Desde Collingham Gardens, vou até a Central School Arts and Crafts onde
estudo arte, lá do outro lado do centro de Londres, mais além de Leicester
Square.
Sejamos francos: não me mato
ao estudo. Desenho nus ao vivo sem muita convicção. Geralmente indiferentes
senhores barbudos e sonolentas mulheres de peito vencido. Num ponto todos os
alunos concordam: os mais velhos são sempre mais interessantes para trabalhar.
Pausa do tea time. Esta água escura com umas gotas de leite não provém com
certeza de Harrod´s ou Fortnum and Masson.
Décadas mais tarde, visitando
a Bienal de Veneza, descobrirei que, numa daquelas friorentas manhãs londrinas,
talvez eu tenha entrado na fila do chá logo atrás do genial Lucian Freud.
Estudou na mesma escola, conforme afirmação de meu catálogo. Mas retirou do
ensino bastante mais do que eu...
Hora do almoço. Vou à
National Gallery devorar os dois sanduíches preparados de manhãzinha, sentado
num banco na frente dos severos e sublimes retratos de Rembrandt. Aos sábados,
ando pelo Tamisa até a Tate Gallery onde despojadas telas monocromáticas de
Rothko me comovem estranhamente. Terei encontro parecido em São Paulo com as grandes
superfícies de Ianelli.
O leitor queira perdoar a
ostentação de tantos nomes. Lembrá-los e escrevê-los é como um jogo onde minhas
lembranças vão pulando de estrela em estrela na escuridão do passado. Sonhos
loucos e temores, impaciência, convicções e insegurança, impulsos. Marcos da
juventude.
Aceito por um grupo de
irrequietos estudantes ingleses, programas não faltam. Em domingos primaveris,
um deles, Michael, mais abonado, nos leva pelos arredores da capital num
maravilhoso conversível amarelo e preto dos anos 30.
Assim descobrirei os tesouros
de Hampton Court, Oxford, Windsor...
No fim dos anos 50, a Inglaterra, ainda
barata, provinciana e bucólica, é caracterizada por tradicional simultaneidade
de convenções e transgressões.
Preparar um leve piquenique
já em si é uma festa. Cedo embarcamos.
Chegamos a Cambridge. Passeio
pelas universidades medievais e neoclássicas, solenes e misteriosas, todas
mergulhadas em densa, mas comportada vegetação.
O sol nos acompanhou desde
cedo e faz brilhar o gramado, luxuoso carpete que, pontuado de minúsculas
margaridas, enfeita as margens do riacho.
Grupos de estudantes, remando
em leves canoas ou espalhados pelo campo, com blazer de listras grossas e
rígido chapéu de palha. Devem estar posando para algum cartão postal.
“Depois do almoço iremos ver
esta casa, lá em cima”, decide Michael.
- Você conhece o dono?
questiono.
- Não, mas é um ex-diretor da
Tate, hoje aposentado, que gosta de abrir sua casa e mostrar sua coleção para
quem deseja visitar.
É verdade. Pouco após
tocarmos a campainha, um senhor, alto, magro, uns sessenta anos, terno claro e
óculos discretos, nos convida a entrar. Casa ampla, luminosa, despojada e
profundamente engajada na arte moderna. Vários nomes nas paredes nos são
familiares.
Noto, no parapeito das
janelas, pedras de formas diversas cuidadosamente colocadas. Pergunto o que
são.
“Pedras que encontro nas
minhas andanças. Atraem-me pela sua cor ou formato. Cada uma me lembra um
momento.”
Fico contemplando estes
silenciosos pedaços de memória.
Ao sair desta casa,
permanecerei sem grande vontade de conversar.
Algo mudou.
Talvez porque as nuvens se
fizeram mais cinzentas e pesadas, porque o assento, de repente, ficou mais
desconfortável.
A brisa do fim de tarde faz
do dia uma simples e fugaz lembrança, um domingo se evapora, sem definição...
No entanto, este domingo e
esta visita vão mudar algo no rumo de minha vida.
Passaram-se uns cinqüenta
anos, perdi até o nome de meus amigos britânicos. Alguns devem ser avós, outros
talvez morreram. Renunciei às veleidades artísticas, voltei algumas vezes à
Inglaterra, sem nunca, porém, retornar a Cambridge.
Guardo no fundo de minhas
emoções inconfessas a visita à casa do homem do Tate como gema preciosa e
benéfica, talismã que teve sobre minha existência radical influência.
Hoje, observando o balançar
das palmeiras desde o vasto terraço sobre a baía onde dormem os cargueiros, um
velho ateu, lutando contra um absurdo nó na garganta, se surpreende ao levantar
para as púrpuras nuvens do entardecer uma forma de oração, agradecendo aquele
sábio inglês que abriu tão belo e longo caminho para um jovem ainda sem rumo.
Escureceu. Chegam os morcegos. Abandono o mar para o aconchego da casa.
Escureceu. Chegam os morcegos. Abandono o mar para o aconchego da casa.
Varro com meu olhar as obras
de arte nas paredes, as pedras espalhadas pelos móveis, pedras que juntei ao
longo da vida. Elas me falam de Monte Alban, Machu-Pichu, Petra, Assuam,
Itaparica ou Istambul. Confesso ter perdido a memória de algumas, mas nem assim
poderia me separar delas. Elas não permitiriam.
Mas onde estarão agora as
pedras de Cambridge?
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 7 de dezembro de 2007.
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