domingo, 5 de abril de 2020

UMA CASA EM CAMBRIDGE


Seixos de Pedras para Jardim em Goiânia | Paraiso das Pedras Goiás

Cada manhã me enfurno no metrô. Desde Collingham Gardens, vou até a Central School Arts and Crafts onde estudo arte, lá do outro lado do centro de Londres, mais além de Leicester Square.
Sejamos francos: não me mato ao estudo. Desenho nus ao vivo sem muita convicção. Geralmente indiferentes senhores barbudos e sonolentas mulheres de peito vencido. Num ponto todos os alunos concordam: os mais velhos são sempre mais interessantes para trabalhar. Pausa do tea time. Esta água escura com umas gotas de leite não provém com certeza de Harrod´s ou Fortnum and Masson.
Décadas mais tarde, visitando a Bienal de Veneza, descobrirei que, numa daquelas friorentas manhãs londrinas, talvez eu tenha entrado na fila do chá logo atrás do genial Lucian Freud. Estudou na mesma escola, conforme afirmação de meu catálogo. Mas retirou do ensino bastante mais do que eu...
Hora do almoço. Vou à National Gallery devorar os dois sanduíches preparados de manhãzinha, sentado num banco na frente dos severos e sublimes retratos de Rembrandt. Aos sábados, ando pelo Tamisa até a Tate Gallery onde despojadas telas monocromáticas de Rothko me comovem estranhamente. Terei encontro parecido em São Paulo com as grandes superfícies de Ianelli.
O leitor queira perdoar a ostentação de tantos nomes. Lembrá-los e escrevê-los é como um jogo onde minhas lembranças vão pulando de estrela em estrela na escuridão do passado. Sonhos loucos e temores, impaciência, convicções e insegurança, impulsos. Marcos da juventude.

Aceito por um grupo de irrequietos estudantes ingleses, programas não faltam. Em domingos primaveris, um deles, Michael, mais abonado, nos leva pelos arredores da capital num maravilhoso conversível amarelo e preto dos anos 30.
Assim descobrirei os tesouros de Hampton Court, Oxford, Windsor...
No fim dos anos 50, a Inglaterra, ainda barata, provinciana e bucólica, é caracterizada por tradicional simultaneidade de convenções e transgressões.
Preparar um leve piquenique já em si é uma festa. Cedo embarcamos.
Chegamos a Cambridge. Passeio pelas universidades medievais e neoclássicas, solenes e misteriosas, todas mergulhadas em densa, mas comportada vegetação.
O sol nos acompanhou desde cedo e faz brilhar o gramado, luxuoso carpete que, pontuado de minúsculas margaridas, enfeita as margens do riacho.
Grupos de estudantes, remando em leves canoas ou espalhados pelo campo, com blazer de listras grossas e rígido chapéu de palha. Devem estar posando para algum cartão postal.

“Depois do almoço iremos ver esta casa, lá em cima”, decide Michael.
- Você conhece o dono? questiono.
- Não, mas é um ex-diretor da Tate, hoje aposentado, que gosta de abrir sua casa e mostrar sua coleção para quem deseja visitar.
É verdade. Pouco após tocarmos a campainha, um senhor, alto, magro, uns sessenta anos, terno claro e óculos discretos, nos convida a entrar. Casa ampla, luminosa, despojada e profundamente engajada na arte moderna. Vários nomes nas paredes nos são familiares.
Noto, no parapeito das janelas, pedras de formas diversas cuidadosamente colocadas. Pergunto o que são.
“Pedras que encontro nas minhas andanças. Atraem-me pela sua cor ou formato. Cada uma me lembra um momento.”
Fico contemplando estes silenciosos pedaços de memória.
Ao sair desta casa, permanecerei sem grande vontade de conversar.
Algo mudou.
Talvez porque as nuvens se fizeram mais cinzentas e pesadas, porque o assento, de repente, ficou mais desconfortável.
A brisa do fim de tarde faz do dia uma simples e fugaz lembrança, um domingo se evapora, sem definição...

No entanto, este domingo e esta visita vão mudar algo no rumo de minha vida.
Passaram-se uns cinqüenta anos, perdi até o nome de meus amigos britânicos. Alguns devem ser avós, outros talvez morreram. Renunciei às veleidades artísticas, voltei algumas vezes à Inglaterra, sem nunca, porém, retornar a Cambridge.
Guardo no fundo de minhas emoções inconfessas a visita à casa do homem do Tate como gema preciosa e benéfica, talismã que teve sobre minha existência radical influência.

Hoje, observando o balançar das palmeiras desde o vasto terraço sobre a baía onde dormem os cargueiros, um velho ateu, lutando contra um absurdo nó na garganta, se surpreende ao levantar para as púrpuras nuvens do entardecer uma forma de oração, agradecendo aquele sábio inglês que abriu tão belo e longo caminho para um jovem ainda sem rumo.
Escureceu. Chegam os morcegos. Abandono o mar para o aconchego da casa.
Varro com meu olhar as obras de arte nas paredes, as pedras espalhadas pelos móveis, pedras que juntei ao longo da vida. Elas me falam de Monte Alban, Machu-Pichu, Petra, Assuam, Itaparica ou Istambul. Confesso ter perdido a memória de algumas, mas nem assim poderia me separar delas. Elas não permitiriam.
Mas onde estarão agora as pedras de Cambridge?

Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 7 de dezembro de 2007.



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