De avião
leva-se pouco mais de uma hora de Lisboa a Casablanca. Para os restantes 500
quilômetros é só sentar num ônibus durante umas oito horas para chegar até a
imensa praia de Agadir, bem ao sul de Marrocos.
Mas minha
viagem não parava por aí. Pegava outro transporte. O amontoado de lataria
enferrujada com janelas quebradas ou que não abriam mais, recheado de
campesinos, militares, mulheres com duas ou mais crianças, trouxas, gaiolas e malas
de papelão me levaria, por mais duas horas ainda, até Tiznit.
Tinha-me
apaixonado por aquele povoado de barro em volta de uma praça arcada onde
joalheiros judeus continuavam a trabalhar como em tantos séculos anteriores. Ruelas
pontuadas de pesadas portas trabalhadas, muros cegos deixando escapar um galho
de romeira ou uma palma.
É numa destas ruas que se escondia o hotel de Monsieur
Ali.
No térreo,
um modesto balcão com a obrigatória fotografia do rei, o comedor, a cozinha...
A escada ampla de ladrilhos hidráulicos leva a uns oito quartos. Cama com
colchão de palha, mesa, cadeira, lavabo. Os lençóis são curtos. O banheiro fica
ao fundo do corredor. Mas a vista! Ah! A vista do hotel de Monsieur Ali... Um
pedaço de paraíso com suas laranjeiras e tamarineiras, os pés de tomate, alho,
cebola, alface, alcachofras, rosas, o todo rodeado de uma orgia de buganvílias
e hibiscos.
Era a
síntese do Reino de Marrocos inteiro, sua magia, sua sensualidade. O paraíso
tem que ser sensual ou não será. Alugava uma bicicleta para vadiar pelo oásis
vizinho, tomar um chá com hortelã num dos três cafés da praça, conversar em
espanhol com os joalheiros, descendentes que eram dos expulsos de Andaluzia
pela rainha Isabel La Muy Católica. Após quinhentos anos ainda falavam ladino.
Mudei de
hemisfério, de vida. Minha paixão por Tiznit permanecia intacta, sublimada pela
memória. Até que no fim dos anos 80, saí de Salvador com a intenção determinada
de rever o vilarejo de meus sonhos.
O ônibus deixou-me
na praça quando o comércio começava a abrir. O choque foi imediato, brutal.
Carros, motos e caminhões barulhentos eliminaram jegues e camelos. As fachadas
rebocadas ostentavam cores agressivas. Anúncios de refrigerantes, pastas de
dentes... Arrastando minha mala, fui pelas ruas que mal conseguia reconhecer.
Não havia mais nenhum muro de barro. Tudo asfaltado, cimentado, banalizado.
Cheguei
finalmente à porta do antigo hotel. Em vão bati e chamei. Do alto de uma casa
vizinha uma voz feminina gritou “Messié Ali m´chá! ”. Monsieur Ali fora embora.
Acrescentou algo que minhas reminiscências de árabe dialetal interpretaram como
uma mulher tinha morrido.
Voltei à praça e peguei o próximo ônibus para Agadir.
Nunca queira
rever uma antiga paixão...
Dimitri Ganzelevitch
Jornal A Tarde
Sábado 18/04/2020
Oh, que lindo!
ResponderExcluirBem verdade.😊
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