sábado, 18 de abril de 2020

UM POETA EM TEMPOS DE QUARENTENA


O sociólogo italiano Domenico de Masi, em recente artigo que circulou nas redes sociais, escreveu estaspalavras lapidares: “A Itália de onde escrevo, um dos países mais vivazes e alegres do mundo, é hoje apenas um deserto. Cada um de seus 60 milhões de habitantes acha que é imortal, que o vírus não o tocará, que irá matar não a ele, mas alguma outra pessoa. 

Porém, no silêncio de seu coração, cada um sabe que essa ilusão é pueril e que essa pandemia misteriosa, abstrata e tangível ao mesmo tempo, escolhe suas vítimas ao acaso, como numa roleta russa.”
Podemos usar estas palavras para situar os países do mundo inteiro, pois não é somente a Itália que vive sob o domínio da avassaladora pandemia. Espanha, Reino Unido e particularmente os Estados Unidos, já estão a ultrapassá-la em número de vítimas e de mortos. Seus povos vivem o mesmo dilema: minimizarem a crise ou se darem conta de que atravessam uma tragédia, diante da qual ninguém é ou sairá imune.
O que se pergunta depois disso é se essa assombrosa realidade abrirá também as mentes e os corações das pessoas além da consciência do perigo individual da morte e da debâcle geral a que todos estamos sujeitos. Se de fato abrir, qual será a direção de seus pensamentos e de suas atitudes perante a vida e a sociedade em que vivem?Espera-se que seja na intenção e em benefício do bem comum. E não basta ter a consciência da ameaça da morte para mudar as condições tantas vezes sofríveis em que vivemos. Queiramos ou não, somos obrigados a ir além disso: descoberta a nossa vulnerabilidade, devemos nos perguntar mais uma vez para que e por que vivemos.
Parece já haver um consenso de que não sairemos os mesmos dessa crise. Mais do que isso: aposta-se que, quando tudo passar, quando o mundo voltar, enfim, ao seu curso normal, ele não mais será igual a antes; os países serão obrigados a repensar os seus caminhos e o próprio homem, confrontando-se com o mais íntimo de si mesmo, terá um momento de lucidez, se aperceberá de seus limites e também se renovará.
E o que tem a poesia a ver com tudo isso? Que papel lhe cabe no quadro de mortandade e de debâcle da economia mundial, com todas as suas consequências sociais e humanitárias? Talvez devêssemos formular esta pergunta de outra maneira, estendendo-a a esferas mais amplas. Um dos fenômenos do mundo em que vivemos é aperda crescente de nossa humanidade: estamos sendo induzidos a figurar na terra como meros robôs, automatizados, isentos de qualquer sentimento nobre e das virtudes que no passado recente nos eram indispensáveis.
Nesse contexto, não só a poesia, mas todas as artes são atacadas por um inimigo sistêmico, que cumpre um desígnio nefasto. Não à-toa ouvimos dizer por aí: a poesiaestá morta! É fato que, no mundo do dinheiro, das imensuráveis riquezas individuais, do consumismo desenfreado, do predomínio absoluto do material sobre o espiritual, não há lugar para a poesia. E se não há para a poesia, também não há para qualquer outra arte.
Então, a poesia passa a ter dois papéis, intimamente imbricados: sobreviver para os leitores, pela supremacia da estética, da beleza e do misterioso contágio amoroso e humano; e sobreviver para si mesma. Ou seja, a poesia ─ como forma de resistência ─ tem a obrigação de se autodefender,de ultrapassar os terríveis obstáculos da sociedade contemporânea e proclamar: eu existo! E continuar a existir!
Nesses tempos insanos, em que o mundo foi apanhado de surpresa pelo ataque de um inimigo invisível e todos fomos obrigados a nos recolher, o poeta Narlan Matos foi buscar no fundo de sua alma palavras de consolo e de esperança, sabendo que falar de sonho e de esperança não é coisa simples nem fácil, pois é obra quase exclusiva da poesia. E quando lemos a sua poesia, concluímos que nem tudo está perdido.
Os três poemas que vão publicados a seguir ─ que chamo aqui de poemas da quarentena ─ falam do atual momento que estamos atravessando, das inevitáveis transformações na alma humana depois das provações porque está passando e das alternativas que nos restam para o futuro. No primeiro deles ─ “canto da manhã nascente” ─ o poeta sonha com o homem que surgirá dessa já inevitável tragédia.
Não se trata, como a princípio possa parecer, do sonho de um homem novo, proposta já tão desgastada pelos manifestos políticos de todas as tendências e credos. Trata-seapenas de um resgate de valores que a modernidade argentária e cruel se encarregou de destruir, substituindo-os pela ideologia mais terrível que já se conheceu, baseada na supremacia dos bens materiais e do dinheiro, no consumismo fútil, na ganância, no individualismo exacerbado e no interesse de classe. Se o homem perdeu a simplicidade, se lhe escapou o sentimento de irmandade e de fraternidade e se se afastou da natureza, não terá outra oportunidade igual para recuperar esses valores:
​“nenhum arco-íris, nenhum arrebol ​nenhuma coisa bela passará invisível”
porque, depois dessa tragédia, “já não mais seremos os mesmos”, “nada mais será tarde”, “teremos sempre tempo para o tempo” e, sobretudo,
​“será fácil viver porque estaremos ​de mãos dadas na ciranda do amor”
Esse retorno ao interior de si mesmo e de sua verdadeira condição humana é um sonho e uma proposta do poeta. É bem provável que o resultado dessa crise culmine num retrocesso histórico, com uma rutura no processo de crescimento econômico,tão impiedoso e atropelador, que estava nos levando a uma saturação do vazio, a uma realidade sem propósitos e sem conteúdo. Podemos ver agora,com todo o fulgor que o momento nos propicia, que talvez ele seja necessário para que o homem se reencontre. O poeta, então, o convoca a esquecer sua insanidade material e seus bens acumulados,que de nada servem e a nada levam diante da morte, mas a ver “os jacintos e os narcisos no jardim de nossa casa”.
O segundo poema ─ “anotações felizes para uma tarde triste” ─ é dedicado exatamente à essa vida em quarentena que o ataque do novo coronavírus nos obrigou. Que pode trazer-nos de bom essa vida confinada? O que ela pode nos ensinar? Preso em casa, cada um se alivia com o que tem e é inevitável que a imaginação corra solta. Narlan Matos vai em busca de seus valores e desejos pessoais, que, comsua ressonância universal, de alguma forma nos inspiram a todos. Faz um alerta:
​“─ a maldita peste depura tudo que existe! ─
​assim como a depurada flor
​que só sabe ofertar perfume ao mundo
​exalaremos de nós o que temos de profundo”
No repique do verso “há uma peste lá fora” sempre suscita um consolo dentro de casa, porque “os pássaros estão cantando / mesmo para as tardes vazias”. Corretíssimo! A natureza ─ ainda não totalmente destruída ─ continua a esperar por nós. O vento segue tangendo as nuvens. A vida prossegue, no fundo ainda mais intensa, porque redescobrimos a nossa mortalidade e o quanto somos pequenos. Se a existência é “um sopro tênue” é inevitável perguntar:
​“e o que faremos agora
​reduzidos de novo à condição humana?”
Todas as coisas simples que o poeta fará dentro de casa ─ falar com os vizinhos “que a séculos não víamos”, ouvir músicas esquecidas, ler velhos livros,recuperar mundos passados e revirar “outros eus” ─ servirá para descobrir que
​“somos mais perfeitos e felizes quando somos simples
​ como uma flor de lis”
Nesse passeio mágico por dentro de nossa alma, finalmente
​“seremos borboletas novas para o mundo
​prontas para começar uma nova manhã”
No terceiro poema ─ “Cântico da misericórdia” ─ um extenso apelo em prosa, Narlan se dirige a Deus ─ na verdade, a todos os deuses, santos e orixás ─pedindo sua misericórdia às pessoas frágeis do mundo, aos oprimidos, explorados e condenados da terra, sofredores de todos os lugares e enganados de todos os matizes. Na sua larga dimensão humana, a implora também ─ nesse caso numa referência sutil e irônica a Donald Trump e Jair Bolsonaro ─ aos “reis loucos” e aos “presidentes loucos, perdidos em seus mares de morte e ignorância”.
Neste longo poema, Narlan expõe a realidade social que enxerga de sua janela de confinado, cumpridor abnegado de sua quarentena. E é aqui que sobressai com mais evidência a veia humanista do poeta. Há referências ao “menininho que chora convulsivamente antes de dormir ao fim do dia”. ao“entregador em domicílios, este anjo urbano…”, ao “crente que passa a semana com a Bíblia debaixo do braço, recitando versículos de cor, pregando Tua palavra de porta em porta, mas ainda não a colocou em seu coração!”: ao “vizinho nefasto, evitado por toda a vizinhança. Ele foi apenas uma vítima de sua própria infância: o pai era vil e obtuso e abusava da pobre criança!”: às “prostitutas nos infectos bordéis, num submundo sujo de lágrimas e desespero, vítimas de homens sórdidos e prisioneiras das hienas deste velho mundo.”; aos “suicidas, queresolveram saltar para fora da vida.”: às “crianças cujos pais lhes ensinaram desde cedo a odiar, a perseguir, a segregar, a matar!”; ao  “povo negro! Quinhentos anos depois ainda carregando o Ocidente em seus ombros, em suas postas abertas de sangue, com suas mãos bravas e negras ─ e sem receber nenhum tostão da riqueza que construiu…”; aos “médicos e enfermeiras que passam as noites em lúgubres hospitais, desprovidos dos equipamentos para salvar vidas alheias”; aos “professores em suas salas de aula. Com suas vidas obtusas, suas rotinas de escravos e seu salário de fome”.
E, finalmente, implora misericórdia para todos osque, indistintamente, o poeta vê e os que não vê “desta minha janela que é mais vasta que o próprio mundo”:
“E se depois de tudo isto, te restar qualquer réstia de misericórdia, Ó Senhor Deus dos desgraçados, tende misericórdia de minh’alma!”
Se não conhecêssemos o poeta Narlan Matos; se não soubéssemos de sua origem pobre nos confins de Itaquara, pequena cidade do interior da Bahia; se já não tivéssemos lido alguns de seus poemas em publicações de pequeno alcance nas redes sociais ─um dos poucos meios de que os poetas se valem hoje para divulgar a sua obra; se não soubéssemos que há 16 anos ele vive na cidade de Washington, nos Estados Unidos, e que sua poesia já foi traduzida em mais de uma dezena de línguas; se não tivéssemos, enfim, nenhuma dessas informações a nosso dispor; então perguntaríamos porque só agora descobriram esses inéditos de Walt Whitman; ou, quem sabe,  porque não foram publicados no seu devido tempo, lá do outro lado do mundo, esses esplêndidos versos de Maiakovski; ou, ainda, em que espelhos mágicos de outros poetas consagrados, a luminescência vibrante dos poemas de Narlan Matos estão refletidos. 
Fazer essas perguntas não é questionar a autenticidade e a originalidade de sua poesia, ao contrário. É reconhecer sua força penetrante, a eloquência espantosa com que traduz a realidade em poesia pura, buscando transformá-la em sonho e esperança; é reconhecer o processo de alquimia que transforma as palavras em imagens, sons e vida, fazendo-as penetrar no âmago de nossas almas, nelas se aninhando para sempre. Porque esse é o grande desafio dos poetas, ao qual Narlan não dá tréguas no exercício de cumpri-lo.
Este Walt Whitman dos tempos modernos está aqui para nos encantar, para nos injetar força de viver na beira do precipício, para nos incutir o dom eterno da existência e da liberdade humanas.
TRÊS POEMAS DE NARLAN MATOS
I
Canção do tempo nascente
depois disso
já não mais seremos os mesmos
Seremos como o desembarque dos bichos 
Depois do Dilúvio: agora já não sabemos de nada e antes sabíamos de tudo 
teremos olhos e tempo para os jacintos
e os narcisos do jardim de nossa casa
para a brisa leve do fim da tarde
o cão caminhando feliz pela manhã
nenhum arco-íris nenhum arrebol
nenhuma coisa bela passará invisível
depois disso
nada mais será tarde
e nenhum lugar será longe demais
para ser feliz e abraçar a vida
seremos como a mão que colhe o fruto
e come ali mesmo porque antes
esperávamos por amanhã que nunca chegou
depois disso
teremos sempre tempo para o tempo
para abraçar as pessoas e as nuvens azuis
como se fosse a primeira vez
seremos como crianças descobrindo o mundo
a harpa da história dedilhará outra mão
haverá uma mesa farta de alegria 
e guloseimas para todos os que amamos
à moça bela com seus cabelos de sol 
brilhando nos céus de março
à cada besouro folhas cada pássaro
cada pluma que voe pelo céu
o lobo a ovelha o orvalho setembrino
– à todos chamaremos de irmãos!
depois disso
será fácil viver porque estaremos 
de mãos dadas na ciranda do amor
e nunca mais negaremos um eu te amo
um quero te ver logo de novo a ninguém
nossas mãos serão rosas silvestres
ofertadas à quem quiser beijá-las.
e depois de tudo isso
as esferas celestiais já não mais habitarão
o infinito 
– serão uma flor plantada em nosso coração
II
anotações felizes para uma tarde triste
há uma peste lá fora 
as ruas estão vazias 
um silêncio mortal 
pousado sobre o dia
todavia os pássaros estão cantando 
mesmo para as tardes vazias 
há uma peste lá fora 
por hora sopra o vento leste
eu aqui dentro de casa 
reviro armários agendas 
reviro o passado, o tédio 
ouço velhos discos 
que há décadas não ouvia 
outros eus que já fui 
me reencontram com alegria
quantas épocas perdidas
releio velhos livros 
com renovado interesse 
quanta coisa boa guardada no velho
o perdido agora está sentado ao meu lado
e descubro que nem lembrava
que tinha tido passado!
até pouco tempo atrás
achava que era eterno 
há uma peste lá fora 
mas todos estão em casa
como há muito não se via
ouço o vizinho do lado 
lendo estórias para os filhos
numa segunda-feira de manhã 
como se fosse um dia de domingo 
eu ensino meu filho a fazer 
debuxes como se fazia na escola antiga
– e me deu uma saudade danada 
de minha velha vida… 
há uma peste lá fora 
foi decretado medo oficial 
estamos todos no xadrez
de nossas salas de estar
mas presos estamos estranhamente livres 
e de repente nos sabemos 
homens mais uma vez 
– apenas homens nem deuses 
nem rainhas nem reis 
e o que faremos agora 
reduzidos de novo à condição humana?
sabemos de novo que somos 
apenas mortais 
sabemos da brevidade da vida 
do sopro tênue da existência 
que depois que partirmos só 
os grandes amigos sentirão 
nossa falta presença
não somos tão essenciais
quando pensávamos ser… 
há uma peste lá fora 
gritando que não somos nada
e o terrível silêncio nos ensina 
que ao contrário do que nos fizeram crer
precisa-se de muito pouco para viver 
aquartelados em nossas residências 
aprendemos à duras penas o caminho da resiliência 
É assim.
a vida no final é sempre a única saída 
depurados por nossos medos aflições choros
– a maldita peste depura tudo que existe! –
assim como a depurada flor
que so sabe ofertar perfume ao mundo
exalaremos de nós o que temos de profundo
chegamos pois neste anti-lugar azul que nos diz
que somos mais perfeitos e felizes quando somos simples.
como uma flor de lis
e depois quando a peste se for e sairmos de nossos
longos e escuros casulos
falaremos de nossas experiencias com a tenaz solidão
com nossos vizinhos que a seculos não víamos
seremos borboletas novas para o mundo
prontas para começar uma nova manhã.
III
Cântico da misericórdia
Senhor Deus, tende misericórdia do menininho que chora convulsivamente antes de dormir ao fim do dia
aprendendo às duras penas o preço que se paga para se fazer homem
e descobrindo as tragédias irremediáveis da vida com seus olhinhos puros de anjinho e plenos de candura e cada lágrima que cai neste escuro se parece com uma estrela cadente e brilhante caindo no infinito céu
que a vida é bela e dantesca, Senhor, e vamos atravessando este vale de lágrimas sozinhos, cada um levando seu fardo pesado.
tende misericórdia do entregador em domicílios este anjo urbano que passa o dia no infernal tráfego da cidade vencendo sinais fechados e ladeiras íngremes desafiando o tempo e as garras das incertezas, respirando sulfatos e ácidos, entregando ordens pontualmente de porta em porta para a alegria das famílias, mas que quase não tem tempo para atender às necessidades de sua própria família.
tende muita misericórdia, Senhor Deus, do crente que passa a semana com a Bíblia embaixo do braço, recitando versículos de cór, pregando Tua palavra de porta em porta, mas ainda não a colocou em seu coração! Que ainda não entendeu que não é o que entra pela boca do homem que lhe contamina, mas o que sai dela… que ainda não aprendeu a perdoar para ser perdoado… e que ataca e destrói templos alheios achando que isto Te agrada, Ó Deus de Abraão!
tende misericórdia do vizinho nefasto, evitado por toda a vizinhança. Ele foi apenas uma vítima de sua própria infância: o pai era vil e obtuso e abusava da pobre criança! O pai o trancava em seu quarto, com as luzes apagava, e ele chorava desesperado implorando para seu amado pai não fazer aquilo, porque o amava profundamente…. e nas noites em que seu pai se embriagava batia na mãe no filho e lembrava do próprio pai – que fizera o mesmo com ele e sua mãe…
tende muita misericórdia, Senhor, das prostitutas nos infectos bordéis, num submundo sujo de lágrimas e desespero, vítimas de homens sórdidos e prisioneiras das hienas deste velho mundo; mas que honram elas teu nome e sempre perdoam os que lhes fazem mal, e sonham com amores verdadeiros cheias de lirismo e beleza…aprisionadas em seus corpos desgastados, almas cintilantes se preparam para ganhar o Paraíso…
não receberam nada daquilo que lhes era preciso, e todavia te dão graças todo santo dia!
tende misericórdia dos suicidas, Senhor, estes que resolveram saltar para fora da vida. E piedade também dos que, embora já mortos, continuaram vivos pela vida afora, sem rota, sem paz e sem foz.
tende muita misericórdia, Senhor, das crianças cujos pais lhes ensinaram desde cedo a odiar, a perseguir, a segregar, a matar! Crescerão para servas do Mal, da ignomínia, do anátema, longe de tuas bem-aventuranças! Oh, pobres crianças…
tende misericórdia, meu Deus, do povo negro! Quinhentos anos depois, ainda carregando o Ocidente em seus ombros, em suas postas abertas de sangue, com suas mãos bravas e negras – e sem receber nenhum tostão da riqueza que construiu… Raptado de suas longínquas pátrias, de suas tribos, de suas geografias na África, e trazidos em navios negreiros imundos às centenas, aos milhares, para construir a América, o jovem continente que envelheceu cedo, manchando suas mãos de sangue inocente. Tende piedade, meu Deus, que ao povo negro ainda não seja atribuído o título de gente… E mesmo assim, este povo guerreiro e forte, encheu de alegrias, de hortas, de canções, de alimentos, religiões de ritmos, os vastos campos da ingrata América!
tende misericórdia, Senhor Deus, dos reis loucos, e dos presidentes loucos, perdidos em seus mares de morte e ignorância… e abençoai pai, os bons ministros lúcidos que ainda se preocupam com o mínimo do povo…
tende muita misericórdia, Senhor Deus, dos médicos e enfermeiras que passam as noites insones em lúgubres hospitais, desprovidos dos equipamentos que precisam para salvar vidas alheias, e que já temem até pela própria vida, mas não abandonam seus postos pelo dever e pelo zelo ao juramento Hipocrático. 
tende muita misericórdia, Senhor Deus, dos professores em suas salas de aula. Com suas vidas obtusas, suas rotinas de escravos, e seu salário de fome, mas que mesmo assim educam os estudantes indóceis abandonados pelos pais em suas mãos! 
tende misericórdia de todos os que vejo e não vejo agora Pai, olhando por esta minha janela que é mais vasta que o próprio mundo… posto que lá fora não há nenhuma calma…
E se depois de tudo isto, se te restar qualquer réstia de misericórdia, Ó Senhor Deus dos desgraçados, tende misericórdia de minh’alma!
Paulo Martins
Lisboa, 12 de abril de 2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário