terça-feira, 7 de dezembro de 2021

UM PASSO PARA A TEOCRACIA



FERNANDO GABEIRA
No momento em que o país afunda na recessão, e cresce a insegurança alimentar, começo com um tema secundário, desses que os analistas políticos acham que mereciam apenas uma nota de pé de página na história.
O tema são os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro. Ele gasta a média de R$ 1,3 milhão por mês, e suas despesas estão sendo julgadas, em segredo, pelo Tribunal de Contas.
É muito dinheiro para quem tem casa, comida, conexão e transporte gratuitos. O relator do processo é o ministro Raimundo Carreiro, o mesmo que Bolsonaro designou embaixador do Brasil em Portugal. Um prêmio.
O deputado Elias Vaz (PSB- GO) pediu que o relator se declarasse impedido. Mas é duvidoso que aceite isso ou que seja levado a isso.
Carreiro foi um grande amigo de Sarney. Nasceu num distrito de Nova Iorque, no Maranhão, e aos 16 anos votou pela primeira vez na UDN. Dizem que se declarou dois anos mais velho para ser eleitor de Sarney.
Sempre foi protegido do cacique maranhense. No Senado, saiu da área de produção de atas e acabou sendo um assessor vital para os presidentes. Sua fidelidade o levou ao Tribunal de Contas, e agora parece cruzar o oceano com ele.
Sou das poucas pessoas que gostariam de saber como Bolsonaro gasta tanto dinheiro. E se isso é legal e razoável.
Como isso escapa um pouco do radar da oposição no conjunto, o melhor é tratar o fato da semana: a eleição de André Mendonça para o STF.
A demora em sabatiná-lo estava ficando constrangedora. Suas declarações ao Senado foram estudadas na medida para impressionar os senadores que, por sua vez, estavam ansiosos para agradar à grande força eleitoral evangélica.
Mendonça disse que, em casa, seguia a Bíblia, e no STF, a Constituição. Mal se sentiu vitorioso, disse que sua vitória era um passo para o homem e um salto para os evangélicos. Como assim?
O Brasil tem uma bancada evangélica que se dispersa por diferentes partidos. Não temos bancadas católica, protestante ou umbandista. Os evangélicos funcionam como um partido político.
Mendonça deu a entender que o processo de infiltração religiosa no poder alcançara um novo patamar com sua eleição.
É espantoso como a oposição e os deputados independentes que fizeram a CPI da Covid-19 embarcaram nessa. Parecem não ter a visão histórica do que é uma teocracia e do que representará para o país. Quando uma confissão religiosa se articula como partido político e busca o poder, lança sinais muito inquietantes.
Na revolução teocrática do Irã, um intelectual de peso como Michel Foucault embarcou na canoa furada de apoiá-la, era popular, antiamericana, deu no que deu.
Estamos longe do Irã, muito mais longe dos talibãs. Mas a mistura da religião com política leva à ditadura teocrática. As religiões pretendem dizer como devemos viver, partidos políticos democráticos apenas apontam soluções para nossos impasses, saídas coletivas que preservam a pluralidade de nossas escolhas.
Quando vi todo aquele esforço para agradar aos evangélicos e ganhar alguns votinhos em troca, quando vi um deputado evangélico que, no passado, foi preso com um avião carregado de dinheiro ao lado do novo ministro do STF, pensei: as coisas não caminham bem no Brasil. Pelo menos, no meu modo de avaliar, baseado em experiência própria.
Ao aprovar Mendonça, os senadores não consideraram o absurdo de invocar a Lei de Segurança Nacional para punir adversários de Bolsonaro, a existência de lista de pessoas suspeitas de ser antifascistas.
E foram enganados na resposta sobre apoio aos direitos dos gays e LGBT.
Se você perguntar a eles se querem um Brasil teocrático, responderão que não. Mas não estabelecem nenhuma conexão entre suas escolhas e as consequências futuras.
Semana de isolamento. Ainda bem que estou em viagem. Preocupar-se com os astronômicos gastos de Bolsonaro e com um possível futuro teocrático do Brasil é coisa de minoria.
Aprendi a me consolar com essa ideia e, ainda assim, a sobreviver nos trópicos.
Artigo publicado no jornal O Globo em 06/12/2021

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