O escritor Graciliano Ramos adquiriu logo cedo um hábito pouco comum às últimas gerações: utilizar o dicionário não apenas para consulta, mas lê-lo, estudá-lo. “Como escritor sou obrigado a jogar com as palavras, preciso conhecer-lhes o valor exato”, justificaria na biografia “O velho Graça”, de Dênis de Moraes. Haja apetite! O “Aurelião” contém 435 mil verbetes. E não é tudo. Considerando a palavra viva, aquela na boca do povo que ainda não consta no dicionário, o número é muito maior.
Pois é... apesar disso, ao ler sobre os 20 mil mortos por Covid - equivalente à queda de 105 aviões com 190 passageiros - e assistir a “live” de Regina Duarte e Jair Bolsonaro fiquei algumas horas sem palavras para essa crônica. Escrever pra quê?
Não bastasse a tragédia dos infectados, a atuação de Regina e Bolsonaro tentando convencer que havia consenso na saída dela da Cultura - coisa do poder -, só revelou mais um exemplo de podre poder – não há outras palavras. E olha que com palavras não se brinca. A desfaçatez da “live” tornando um desenlace público – ela foi demitida – numa troca honrosa é presságio agourento. O psicanalista Rubem Alves lembra em “Palavras para desatar nós” que a palavra tem poderes mágicos, promove milagres. “Livros e palavras têm poder. Podem ajudar. Mas não se deixe enganar pelo seu aspecto inocente. O livro ‘Minha Luta’ era o sonho de um louco, Adolf Hitler, que hipnotizou um país com suas palavras e produziu milhões de mortos”, adverte.
Rubem Alves tentava ajudar as pessoas a se transformarem pelo uso da palavra. Diferentes e com queixas diferentes, elas tinham em comum um desejo: ter alegria. “E essa é a busca de tudo o que vive. Acho que até as plantas querem ser felizes.
Acho que foi por isso que Beethoven, já surdo, fez orquestra e coral cantarem Ode à alegria”, supôs. O escritor Otto Lara Resende escreveu que Graciliano Ramos não tinha uma visão cor-de-rosa da vida. Era um deprimido, mais inclinado ao mau-humor do que à ternura. Referindo-se a um elogio feito ao livro “Caetés” por um crítico italiano, reagiu: “Infelizmente a opinião dele não combina com a dos literatos aqui da terra: estes continuam a me julgar uma besta”. E conclui: “É o Diabo. Não se pode agradar a todos”. O fino do humor.
Não sei se alegria caminha ao lado do humor, mas as palavras ajudam quando estão sob o domínio de um Luís Fernando Veríssimo. Em “O gigolô das palavras”, ele se recorda de um grupo de alunos que o procurou para saber se ele considerava o estudo da gramática indispensável para aprender a língua. Sensível, desconfiou que o professor dos estudantes devia ser leitor de sua coluna e que “se descabelava com as afrontas às leis da língua e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar”. O autor já ia colocar a culpa na revisão, quando descobriu que havia sido escolhido pelos próprios alunos. Foi um alívio.
Veríssimo respondeu que respeitava algumas regras básicas para evitar vexames - “as outras são dispensáveis”. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. “Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer ‘escrever claro’ não é certo, mas é claro, certo?” O importante é comunicar e, quando possível, iluminar, divertir, comover. Lembra-me o Velho Graça e o livro “Vida secas”, no qual as palavras são áridas como as paisagens ali descritas. Ao ponto de fazer a cachorra “Baleia” ser tão humana quanto Fabiano, Sinhá Vitória e os dois filhos sem nome. Ambiente hostil que Graciliano sentiu na pele. E foi num dos raros momentos de afeto da mãe que ele perceberia, pela primeira vez, o “valor enorme das palavras”.
Cláudio Pimentel,
jornalista.
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