Você sabe o que vai acontecer. No entanto, desconhece como
os atores vão representar o texto, como reagirão às falas, como
se movimentam no espaço cênico.
O famoso vídeo da reunião do Conselho de Ministros já foi
vazado a ponto de termos uma ideia de como transcorreu.
Sim, havia dúvidas sobre os palavrões. Como foram ditos,
com que expressão facial, em que contexto, que tipo de olhar
suscitaram.
Tenho impressão de que o vídeo veio na íntegra. O corte da fala
de Weintraub é tão óbvio que todo mundo percebe o que disse:
não queria ser escravo do PC chinês. Talvez seja uma das frases
mais inocentes de todo o texto.
Não foi uma reunião de Conselho de Ministros tal como a
supomos. Foi mais parecido com uma pajelança, uma tentativa
de Bolsonaro de animar seu Ministério. O debate mesmo era
sobre o plano Pró-Brasil.
O trecho básico, que interessa ao processo nascido com a queda
de Moro, é o que afirma que não vai deixar sua família se foder,
nem seus amigos. Por isso, mudaria até o ministro se necessário.
Mudou o superintendente da Polícia Federal, e Moro caiu em
seguida.
O nível das intervenções de Bolsonaro é bastante singular se
cotejado com os documentos de reuniões presidenciais. Um dos
momentos mais dramáticos foi afirmar que, se a esquerda
vencesse, todos estariam cortando cana e ganhando 20 dólares
por mês.
Como escritor, o que mais me impressionou foi a maneira como
figurou a perda da liberdade: “Eles querem nossa hemorroida”,
disse. Da primeira vez, hesitei. Seria isso mesmo? De onde tirou
a hemorroida para expressar a perda da liberdade, não tenho a
mínima ideia. Os analistas talvez nos ajudem.
A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma
boa ideia de como estamos sendo governados. Não apenas pelas
palavras escolhidas, mas pela falta de conexão, de uma liderança
que tivesse a agenda na cabeça e tentasse trabalhar o Ministério
no conjunto como o maestro que rege uma orquestra afinada.
A perversidade ficou evidente na fala do ministro Ricardo Salles.
Ele sabe que a Amazônia está sendo destruída num ritmo alucinante:
de agosto de 2019 a abril de 2020 o desmatamento cresceu 94,4 %
em relação ao período de agosto de 2018 a abril de 2019.
A tática explícita de Salles é aproveitar a grande preocupação com
a pandemia e passar todas as agendas que significam enfraquecer
a legislação ambiental e acelerar o processo destrutivo em curso.
Eu já intuía isso. O Human Rights Watch publicou um relatório
semana passada, mostrando como as multas na Amazônia deixaram
de ser devidamente cobradas desde outubro e como os funcionários
sentem-se desamparados na execução da lei.
Consegui passar essa mensagem no meio de uma notícia sobre
Covid. É preciso usar todas as brechas para neutralizar a tática
perversa.
O general Heleno escreveu uma nota ameaçadora antes da
divulgação do vídeo. Não entendeu que o ministro Celso de Mello
apenas submeteu ao procurador-geral a hipótese de periciar o
telefone de Bolsonaro e seu filho Carlos.
A ameaça é clara: intervenção militar. Heleno é um militar com
experiência internacional. Creio que ele e as Forças Armadas
sabem que existe uma pandemia e que ela é um tema decisivo
para a Humanidade.
Creio também, caso leiam os jornais, que sabem o papel de
Bolsonaro no imaginário internacional: o de um negacionista,
cada vez mais perigoso na medida em que o Brasil torna-se o
epicentro da pandemia mundial.
Um golpe militar no Brasil vai colocar o país em choque com o
mundo. Dois temas vão se entrelaçar: a pandemia e a destruição
da Amazônia.
Não creio que depois de tanta reflexão histórica, estudos, seminários,
palestras, cursos no exterior, as Forças Armadas queiram participar
dessa aventura. Já associaram sua imagem à cloroquina. Será que
ouviriam o general Heleno e os defensores de uma intervenção
militar?
Desta vez, não cairemos no erro de resistir com armas. Será uma
luta longa e pacífica, alavancada pelo próprio mundo. Da primeira
vez foi uma tragédia; agora, será uma farsa com consequências
profundas. Se é possível dar um conselho, ai está: por favor, não
tentem.
Artigo publicado no jornal O Globo em 25/05/2020
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