terça-feira, 26 de maio de 2020

SINTO UM CHEIRO DE OPORTUNISMO

Preço do diesel cai 9% após greve dos caminhoneiros; gasolina ...

Sinto um inequívoco cheiro de oportunismo no ar. Do tipo guloso, que esconde mercadorias debaixo do balcão ou que aumenta o preço da gasolina abusivamente.
Sinto um aroma de egoísmo no ar. Daquele tipo mais baixo, que abarrota carrinhos de supermercado como se a terceira guerra mundial estivesse às portas.
Sinto cheiro de sociopatia no ar. Do tipo que só se importa com a barriga forrada de comida, indiferente aos que caem de fome na casa ao lado; que abastece o carro até o limite do tanque, sem se incomodar se a fila atrás de si tem quilômetros de extensão; que se prevalece do desespero alheio para lucrar mais. E ainda admite tudo isso em entrevista na TV. Candidamente.
Sinto perfume de sebastianismo no ar. Do tipo que elege um herói troncho a cada episódio, mesmo que este devore coisas muito mais sagradas, como o direito de ir e vir, o direito à saúde, à vida, à escola - patrimônios inalienáveis que se não deveria admitir serem ameaçados por quem quer que seja. Por dinheiro algum.
Sinto cheiro de ideologia barata no ar. Do tipo que concorda em apoiar qualquer coisa, desde que atenda às suas (geralmente estreitas) visões de mundo. Do tipo que é avesso a análises profundas das causas e inimigo de soluções decentes (que dão trabalho para construir e exigem firmeza moral e paciência por parte dos que as buscam), pois só consegue compreender e aplaudir o que é rasteiro, imediatista, dito aos berros e soa como um slogan populista.
Sinto aroma de cegueira no ar. Do tipo que atribui aos inimigos políticos aquilo que é responsabilidade de seus ídolos. Do tipo que manipula, inverte, desvirtua a realidade para convencer a si e aos outros que seu grupo monopoliza a virtude e a ação correta.
Sim, pagamos impostos escorchantes sobre os combustíveis. Sim, é bom ver o brasileiro dizendo ao governo, em alto em bom som, que já não aceita passivamente ser extorquido. Sim, é necessário enviar mensagens importantes a uma classe política corroída pelos escândalos e adoradora do próprio umbigo.
Não, os caminhoneiros não são a salvação da lavoura que o infalível sebastianismo pátrio já elegeu como novo herói. Há evidentes exageros na estratégia, há chantagem, interesses ocultos, lacunas de informação.
Sim, o governo agiu à moda do velho jeito Temer de ser: desatento ao caos que se anunciava, voltando atrás perante a crise, buscando soluções que parecem remendos, transferindo a conta para o cidadão brasileiro e, por fim, acionando as Forças Armadas para resolver o problema, desviando-as de sua função primordial e consolidando-as como multitarefa, pau-pra-toda-obra e coringa da nação despedaçada.
Reféns já estamos. E não é só dos caminhoneiros. É desse pensamento para o qual não faltam adjetivos: barroco, acanhado, miúdo, patético, selvagem. É uma espécie de vírus que espalha a doença cujo principal sintoma é a ausência de senso de coletividade, aquele brilho interno que faz o homem se sacrificar pela sua comunidade, pensar no bem comum, exercitar a compaixão, compartilhar o pouco que tem com seus vizinhos, amigos e os desconhecidos irmãos-compatriotas.
Falta-nos amor por esta nossa terra e maturidade para viver nela. Falta-nos valorizar esse chão mais que generoso que enchemos de dejetos físicos, mentais e morais. Um país-continente, riquíssimo, de clima ameno, mas habitado por uns brutos.
Culpa deste nosso ethos vadio - filhote de macunaíma a flertar com a irresponsabilidade.
***
O Brasil da greve dos caminhoneiros é um romance de Saramago: Ensaio sobre a Cegueira. Basta algo ameaçar as regras sociais para que o caos se instale por aqui. Paramos de enxergar de imediato a necessidade do outro para nos adorarmos no altar de nós mesmos. É humano, bem sei, mas aqui ultrapassa o limite da normalidade. A pandemia de corrupção nacional não me deixa mentir. Aí está ela, democraticamente enraizada em todas as classes sociais, etnias e profissões, escondida em qualquer nicho mínimo que possa sugar, como mosca varejeira, o sangue verde dos cofres públicos.
Que importa se pessoas morrerão nos hospitais, se faltará comida, se os remédios desaparecerão?
Enquanto tudo isso ocorre, alguns se deliciam com o colapso, amantes da anarquia irrestrita, ansiosos para ver o circo arder.
Riem-se estes das chamas, esquecidos que, dentro delas, há gente inocente e amiga cuja carne queima. E que a lona destruída pelo fogo é a cobertura de sua própria casa.
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Sinto um cheiro de falência moral. E ele me angustia.

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