quarta-feira, 20 de maio de 2020

A FALA DO GENERAL



João Martins Ladeira*
Frente às repetições nos depoimentos dados pelos militares, a informação de Heleno sobre a proximidade entre Ramagem e Bolsonaro não é uma discordância qualquer.
As falas desconexas sobre a reunião presidencial de 22 de abril – prova sobre a tese do Rashomon de Kurosawa de que a vida é composta por perspectivas dispersas – talvez apontem um dos primeiros momentos em que os generais deixaram de adotar uma postura coordenada com o presidente. A semana foi marcada por diversos depoimentos, e os mais esperados eram os de Heleno, Ramos e Braga Netto. Neles, os militares falaram em uníssono naquilo que se refere ao interesse de Bolsonaro em informações que polícias, órgãos de inteligência e forças armadas deveriam produzir para ele.
Isso deslocaria a acusação de um interesse específico num órgão pontual, dando à conversa um tom genérico. Num cenário confuso, muita coisa pesa na citação nominal que Ramos escutou à Polícia Federal, mas os demais ouviram alusões mais amplas. Tudo ficaria na conta da mente obcecada do presidente que, quando deputado, conferia o automóvel para ter certeza de que não havia bombas escondidas e que nunca bebia água de uma garrafa deixada na geladeira por medo de envenenamento – como conta o Tormenta de Thaís Oyama.
Mas são trivialidades, gestos que servem apenas para tergiversação. Mais importante é o tweet de Mourão, afirmando a aliança com seus colegas de farda, que – presume-se – seria mais importante que com o ex-capitão. Não era o presidente o homem honrado. Encontra-se também no artigo publicado pelo vice no Estadão, em que o general apresenta sua “alternativa” num texto cifrado, que novamente não cita Bolsonaro, e que parece digno do não dito lacaniano. Pois alguns detalhes indicam que talvez nem todas as falas foram em oitavas perfeitas.
O ponto mais relevante reside na informação de Heleno sobre a proximidade entre Ramagem e Bolsonaro. Os generais deram aquilo que se esperava deles, na intensa velocidade com que Celso de Mello solicitou o depoimento dos três militares. Insistiu-se que a divulgação do vídeo era um ato “impatriótico” (sic). Mas a ponta solta parece ser o que mais se aproxima das declarações de Moro sobre a expectativa de Bolsonaro em relação à Polícia Federal. Os generais se movem devagar.
O processo desencadeado pelas declarações do ex-ministro é complexo, e envolve a necessidade de estabelecer evidências de atos, e não apenas averiguar intenções. Como indicou Oscar Vilhena em sua participação no Café da Manhã, o crime de responsabilidade se refere a algo que fere à Constituição, mas o crime comum diz respeito a uma intervenção do presidente, e não apenas a desejos. São caminhos tortuosos, da PGR a dois terços do Congresso, passando pelo STF. Alguns analistas indicaram que aí estaria a melhor oportunidade de se cozinhar uma pizza.
As dificuldades jurídicas são muitas, mas a sensação de que existe dissonância num bloco até aqui coeso aponta para o que ocorre fora dos tribunais. O caso ganhou as ruas, e em breve, estaremos diante da gravação que vai quebrar o YouTube, no espetáculo de luz e sombras que as mídias técnicas oferecem sempre que necessário. Máquina de evidências, elas vão animar a repercussão do caso, na expectativa de que sua pressão seja útil na transição governamental que se prepara. Moro foi fritado em fogo alto, mas Bolsonaro vai a banho-maria.
O centro de toda a discussão se refere ao interesse do presidente em conduzir as tão faladas trocas na Polícia Federal, garantido que informações desconhecidas permaneçam desconhecidas. É o gesto repetido mundo afora por quem busca se manter no poder produzindo distorções no judiciário. Burlar o inconveniente da lei foi coisa tentada em diversas ocasiões, e está fartamente documentada por historiadores como Timothy Snyder e pelo jornalismo de veículos como o The Guardian ou o New York Times. Bolsonaro segue um roteiro global.
Fatos recentes incentivaram quem tinha expectativa em falar. O depoimento de Moro em Curitiba foi considerado fraco, com poucas provas, como indicaram Bruno Boghossian e Camila Matoso em reportagens distintas. Mas isso importa menos frente ao “tudo ou nada” que as afirmações do ex-ministro guardam em si. Pois elas não podem ser consideradas banais e o próprio ex-juiz não vai escapar do risco de ser ele mesmo responsabilizado pelo que disse. Parte da direção que o caso vai tomar dependerá de quem vai decidir se pronunciar e de que forma.
Bolsonaro e Moro podem ter cometido ações questionáveis, e alguém vai perder. Contudo, por mais fraca que porventura tenha sido – questão que os juristas decidirão – sua intervenção fez o STF colocar em marcha o escrutínio que o depoimento judicial tem no Brasil. Isso permitiu aos generais falarem, e o que disseram é mais uma engrenagem na máquina. Entra em cena o rumor, a probabilidade palpável que se expande. Só os tolos ignoram que a política vive da tecnologia midiática, na velocidade com que se aciona sensibilidades.
*João Martins Ladeira é professor e pesquisador em Comunicação. Colabora com a Escuta.

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