Porta de casarão muito bem conservado em São Leopoldo (RS). Está indicado para preservação por um decreto, em um raro caso de consideração deste estilo numa listagem oficial. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)
Brega, cenográfico, exagerado, descontextualizado. Estes são apenas alguns dos adjetivos normalmente atribuídos a um estilo arquitetônico que pode ser definido por “estilo Missões”. Na mesma vertente neo-colonial também figura o “neo-colonial hispânico”, “hispano-americano” ou “espanhol”, na época conhecidos como “estilo mexicano” e “bungalows californianos”. Este misto de diferentes influências no geral busca imitar esteticamente o estilo das missões espanholas no méxico, e mais tarde, a arquitetura civil destas colônias, cujo revival teve muita difusão na Califórnia-EUA.
Frontão do Palacete Herbert Von Brixen-Montzel (1932), projetado por João Antônio Monteiro Neto, na rua Santa Terezinha 201, em Porto Alegre (RS) (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010).
O nome do “estilo missões” vem de sua denominação norte-americana: Missions Revival. Sua origem nos Estados Unidos remonta a década de 1890. Mais tarde o repertório visual evoluiu para o Spanish Colonial Revival, que além das missões inspirava-se também na arquitetura residencial das colônias espanholas, e até mesmo para o Pueblo Revival, que imitava construções simples dos pueblos mexicanos e que aparentemente não desembarcou por aqui.
No Brasil, difundiu-se principalmente após a contraditória década de 30, que coincidiu com o início da penetração dos ideais modernista, Art Déco e outros minoritários. O estilo teve direito até a uma versão local: o neo-colonial brasileiro, que buscava a releitura das construções tradicionais luso-brasileiras. Este, porém, teve pouca ou nenhuma penetração no Rio Grande do Sul. Talvez por influência da proximidade física e cultural com a região platina, os gaúchos adotaram as edificações chamadas à época de “mexicanas”, em detrimento a sua versão brasileira.
Exemplar em Presidente Lucena (RS) demonstra a penetração do estilo mesmo em localidades mais isoladas. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
As edificações influenciadas por alguma vertente deste estilo marcaram a paisagem urbana residencial brasileira, pois tiveram sua época de ouro em que dominaram boa parte da produção. Porto Alegre teve bairros inteiros influenciados pelo estilo, como o Petrópolis e Vila Assunção. No segundo, até mesmo a igreja do bairro foi construída nestes parâmetros, algo relativamente raro. Em outros locais também moradias de interesse social foram construídas com esse estilo.
Igreja Nossa Senhora da Assunção, em Vila Assunção - Porto Alegre (RS), influenciada pelo estilo, mas sincretizado com os arcos góticos. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
É patrimônio?
A oposição acadêmica ao estilo missões e suas vertentes, que impede sua patrimonialização, é fundamentada em diversos argumentos, alguns bastante plausíveis. O primeiro deles é a completa desvinculação da realidade brasileira – trata-se de um estilo onde a “maquiagem”/decoração é pensada sem aplicação das proporções e regras de composição clássicas. Isto torna o estilo missões bastante “cenográfico”, pois seu aspecto está vinculado a uma realidade cultural completamente distinta. Este argumento desqualifica a qualidade do projeto arquitetônico, que aparenta ser mero produto imobiliário, resultante de uma “moda” que carecia de vinculação com a história local.
Exemplar inventariado como patrimônio cultural em 1996 pela prefeitura, em Campo Bom (RS). Infelizmente, o inventário nesta cidade não quer dizer muita coisa, pois demolições são autorizadas sem sequer consultá-lo. De qualquer forma, mostra a preocupação em preservar esse importante período, enquanto se tinha a ilusão de que o inventário serviria para alguma finalidade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2008)
O segundo argumento mais usado é a data de construção relativamente recente dos exemplares. Embora o estilo originalmente tenha surgido no final do séc. XIX, seus exemplares brasileiros alcançaram até o mais tardar dos anos 60. Por algum motivo, aparentemente existe sub-entendida uma data “cabalística” estabelecida pelo senso comum para proteção de patrimônio cultural – costuma-se selecionar apenas edificações anteriores a 1940. Aos poucos, felizmente, esses critérios estão sendo substituídos por uma visão mais fundamentada e baseada na história local de cada cidade.
Exemplar em Três Passos (RS). Este tipo de construção pode ser encontrado em praticamente qualquer cidade, em menor ou maior proporção. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
E por que não?
Não iremos fazer aqui uma defesa categórica e ampla do estilo missões, pois acreditamos que mesmo a valorização desse tipo de edificação também passa pela compreensão de sua debilitada dimensão cultural. Reconhecemos a coerência dos argumentos que comprovam deficiências teóricas deste estilo, que realmente tinha uma conotação bastante cenográfica, mas acreditamos que cada caso deva ser visto com muito cuidado.
Os valores que definem um bem de interesse cultural são muitos. A definição de patrimônio cultural implica numa visão ampla, que não considere apenas os critérios de “relevância arquitetônica” (típico da análise de projeto e sua vinculação com correntes teóricas) e de “história” (típica da história positivista, que exalta grandes eventos ou personagens importantes que a edificação pode ter abrigado). Existe uma série de outros valores possíveis, como o técnico (construção com técnicas construtivas peculiares), paisagístico (formação de conjuntos ou paisagens urbanas juntamente com outros prédios ou entorno natural), funcional (edificação simbólica de um uso consagrado), social (reconhecimento popular do valor da edificação) entre outros.
Interessante residência de Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
O estilo missões e suas tendências representam um capítulo importante na história da arquitetura brasileira, e na própria história cultural do país. Juntamente com o Art Déco e com os outros revivals, ele marca o cenário que envolve o durante e o pós Segunda Guerra Mundial, e a adoção da cultura norte-americana como parâmetro, em detrimento aos modelos europeus típicos Beaux-Arts seguidos fielmente até então. A ampla penetração que o “bungalow californiano” teve pode de fato não relacionar-se com a história da arquitetura pretérita local, mas foi representativa de uma nova “realidade cultural” do pós-guerra onde, bem ou mal, o predomínio da indústria automobilística, do cinema holywoodiano e dos usos e costumes norte-americanos passaram a ser referência. É, juntamente com o Art Déco e o modernismo, marcante da "globalização" dos modelos de construção em todo Brasil.
Casa de veraneio típica de Torres (RS), uma das poucas que sobreviveram à pressão imobiliária. Sem proteção nem perspectivas, tem os dias contados. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
Também é importante ressaltar o valor do estilo missões para a história da arquitetura e do design brasileiro. O estilo, como toda “tendência”, foi acompanhado de todo um esforço industrial para a produção de peças compatíveis com sua linguagem. A edificação era pensada em conjunto com a mureta, portão, luminárias, garagens como corpos separados, jardins, mobiliário e esquadrias específicas. O papel do arquiteto deixava de ser apenas o de projeto da edificação em si , para se extender a arquitetura de interiores e paisagismo – esse aspecto “moderno”dos estilos difundidos nos anos 30 é frequentemente ignorado e atribuído apenas ao modernismo.
Em muitas localidades, também foi o estilo missões o primeiro a introduzir uma série de inovações na construção, como o uso de concreto armado. Também ampliou a valorização da salubridade no projeto dos ambientes, propondo amplos recuos em relação aos limites do lote e da rua, a abertura de grandes janelas para circulação de ar e iluminação.
Como paisagem urbana, alguns exemplares são importantes por integrarem conjuntos homogêneos de edificações unifamiliares construídas com a mesma linguagem. A qualidade desses ambientes urbanos enquanto conjuntos não deveria ser desconsiderada, pois relaciona-se diretamente com a qualidade de vida dos bairros. Alguns elementos dessas edificações acabaram tornando-se marcos urbanos, o que é o caso principalmente de algumas torres que marcam esquinas.
Casa situada em Hamburgo Velho, sítio histórico de Novo Hamburgo (RS), determinante para o perfil heterogêneo do bairro (foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2011)
A inserção em sítios históricos também é importante, mesmo acompanhados de edificações de diferentes épocas, pois além de representar um período, é completamente compatível com a paisagem urbana tradicional e com o modelo tradicional de parcelamento do solo.
Pequena residência em Dois Irmãos (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
Acreditamos que estas qualidades, bem como outras que podem surgir ao analisar com sensibilidade e critérios cada caso, devem ser levadas em consideração antes de simplesmente descartar edificações construídas neste estilo de inventários de patrimônio cultural. Verdades prontas não podem ser implantadas sem problematização, sob o risco de perdas irreparáveis, como já aconteceu com a arquitetura tradicional luso-brasileira e com o estilo eclético, alvos de preconceitos em diferentes períodos.
Jorge Luís Stocker Jr.
É patrimônio?
A oposição acadêmica ao estilo missões e suas vertentes, que impede sua patrimonialização, é fundamentada em diversos argumentos, alguns bastante plausíveis. O primeiro deles é a completa desvinculação da realidade brasileira – trata-se de um estilo onde a “maquiagem”/decoração é pensada sem aplicação das proporções e regras de composição clássicas. Isto torna o estilo missões bastante “cenográfico”, pois seu aspecto está vinculado a uma realidade cultural completamente distinta. Este argumento desqualifica a qualidade do projeto arquitetônico, que aparenta ser mero produto imobiliário, resultante de uma “moda” que carecia de vinculação com a história local.
Exemplar inventariado como patrimônio cultural em 1996 pela prefeitura, em Campo Bom (RS). Infelizmente, o inventário nesta cidade não quer dizer muita coisa, pois demolições são autorizadas sem sequer consultá-lo. De qualquer forma, mostra a preocupação em preservar esse importante período, enquanto se tinha a ilusão de que o inventário serviria para alguma finalidade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2008)
O segundo argumento mais usado é a data de construção relativamente recente dos exemplares. Embora o estilo originalmente tenha surgido no final do séc. XIX, seus exemplares brasileiros alcançaram até o mais tardar dos anos 60. Por algum motivo, aparentemente existe sub-entendida uma data “cabalística” estabelecida pelo senso comum para proteção de patrimônio cultural – costuma-se selecionar apenas edificações anteriores a 1940. Aos poucos, felizmente, esses critérios estão sendo substituídos por uma visão mais fundamentada e baseada na história local de cada cidade.
Exemplar em Três Passos (RS). Este tipo de construção pode ser encontrado em praticamente qualquer cidade, em menor ou maior proporção. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
E por que não?
Não iremos fazer aqui uma defesa categórica e ampla do estilo missões, pois acreditamos que mesmo a valorização desse tipo de edificação também passa pela compreensão de sua debilitada dimensão cultural. Reconhecemos a coerência dos argumentos que comprovam deficiências teóricas deste estilo, que realmente tinha uma conotação bastante cenográfica, mas acreditamos que cada caso deva ser visto com muito cuidado.
Os valores que definem um bem de interesse cultural são muitos. A definição de patrimônio cultural implica numa visão ampla, que não considere apenas os critérios de “relevância arquitetônica” (típico da análise de projeto e sua vinculação com correntes teóricas) e de “história” (típica da história positivista, que exalta grandes eventos ou personagens importantes que a edificação pode ter abrigado). Existe uma série de outros valores possíveis, como o técnico (construção com técnicas construtivas peculiares), paisagístico (formação de conjuntos ou paisagens urbanas juntamente com outros prédios ou entorno natural), funcional (edificação simbólica de um uso consagrado), social (reconhecimento popular do valor da edificação) entre outros.
Interessante residência de Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
O estilo missões e suas tendências representam um capítulo importante na história da arquitetura brasileira, e na própria história cultural do país. Juntamente com o Art Déco e com os outros revivals, ele marca o cenário que envolve o durante e o pós Segunda Guerra Mundial, e a adoção da cultura norte-americana como parâmetro, em detrimento aos modelos europeus típicos Beaux-Arts seguidos fielmente até então. A ampla penetração que o “bungalow californiano” teve pode de fato não relacionar-se com a história da arquitetura pretérita local, mas foi representativa de uma nova “realidade cultural” do pós-guerra onde, bem ou mal, o predomínio da indústria automobilística, do cinema holywoodiano e dos usos e costumes norte-americanos passaram a ser referência. É, juntamente com o Art Déco e o modernismo, marcante da "globalização" dos modelos de construção em todo Brasil.
Casa de veraneio típica de Torres (RS), uma das poucas que sobreviveram à pressão imobiliária. Sem proteção nem perspectivas, tem os dias contados. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
Também é importante ressaltar o valor do estilo missões para a história da arquitetura e do design brasileiro. O estilo, como toda “tendência”, foi acompanhado de todo um esforço industrial para a produção de peças compatíveis com sua linguagem. A edificação era pensada em conjunto com a mureta, portão, luminárias, garagens como corpos separados, jardins, mobiliário e esquadrias específicas. O papel do arquiteto deixava de ser apenas o de projeto da edificação em si , para se extender a arquitetura de interiores e paisagismo – esse aspecto “moderno”dos estilos difundidos nos anos 30 é frequentemente ignorado e atribuído apenas ao modernismo.
Em muitas localidades, também foi o estilo missões o primeiro a introduzir uma série de inovações na construção, como o uso de concreto armado. Também ampliou a valorização da salubridade no projeto dos ambientes, propondo amplos recuos em relação aos limites do lote e da rua, a abertura de grandes janelas para circulação de ar e iluminação.
Como paisagem urbana, alguns exemplares são importantes por integrarem conjuntos homogêneos de edificações unifamiliares construídas com a mesma linguagem. A qualidade desses ambientes urbanos enquanto conjuntos não deveria ser desconsiderada, pois relaciona-se diretamente com a qualidade de vida dos bairros. Alguns elementos dessas edificações acabaram tornando-se marcos urbanos, o que é o caso principalmente de algumas torres que marcam esquinas.
Casa situada em Hamburgo Velho, sítio histórico de Novo Hamburgo (RS), determinante para o perfil heterogêneo do bairro (foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2011)
A inserção em sítios históricos também é importante, mesmo acompanhados de edificações de diferentes épocas, pois além de representar um período, é completamente compatível com a paisagem urbana tradicional e com o modelo tradicional de parcelamento do solo.
Pequena residência em Dois Irmãos (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
Acreditamos que estas qualidades, bem como outras que podem surgir ao analisar com sensibilidade e critérios cada caso, devem ser levadas em consideração antes de simplesmente descartar edificações construídas neste estilo de inventários de patrimônio cultural. Verdades prontas não podem ser implantadas sem problematização, sob o risco de perdas irreparáveis, como já aconteceu com a arquitetura tradicional luso-brasileira e com o estilo eclético, alvos de preconceitos em diferentes períodos.
Jorge Luís Stocker Jr.