Foi numa
quinta-feira de céu azul-inocência com pequenas nuvens brancas desenhadas por
crianças, primavera já bem avançada. Estranhei a Marcelina ainda não ter
chegado para servir o pequeno almoço. Alguém tocou a campainha. Fui abrir. Surprise: John! Sim, aquele inglês com
quem, três meses antes, tinha acampado durante uns dias no teto de uma gaiola
descendo o rio Amazonas entre Iquitos e Benjamin Constant!
Muito baixo,
quase anão, trabalhava como garçom na Austrália durante seis meses juntando
dinheiro para comprar opalas que revendia imediatamente em Londres. Com o lucro
viajava pelo mundo. Um clássico globe
trotter. Mandei entrar, levei-o até o quarto de hóspedes para deixar sua
mochila e tomar banho. E nada de Marcelina...
Começava a
preparar o café quando ela chegou, ofegante. Senhor Dimitri! Os militares
derrubaram o governo! Eles estão a fazer discursos na rádio. Não tem mais
transportes públicos! Está tudo parado! Meu Deus... Onde está minha filha?!
Liguei a rádio. Marchas militares, discursos inflamados, cantos
revolucionários. Grândola Vila Morena, mais discursos.... Não podia deixar de
participar de um momento tão excepcional. Tomamos o café rápido e fomos até a
estação de trens de Cascais. Não havia quase ninguém. Venda de bilhetes
fechada, horários incertos. Mas um trem com ar de se preparar para sair.
Entramos no momento em que as portas fechavam. Não parou em nenhuma estação. Ao
longo dos quarenta minutos de viagem, notei que todas as praias estavam desertas.
Chegando ao Cais do Sodré, subimos a pé até o largo do Carmo onde encontramos
uma multidão silenciosa à volta do portão do quartel dos bombeiros. Jacarandás
floridos.
Por fim saiu o carro onde o “antimoderno, antiliberal e
antidemocrático” presidente do Conselho Marcelo
Caetano estava a caminho da prisão. Gritos, cantos. Descemos o Chiado, mas em
baixo da rua Garrett, homens atiravam. Melhor mudarmos de itinerário. No dia
seguinte - John saíra cedo para outras aventuras pelo mundo – fui até o forte
de Caxias para assistir à liberação dos presos políticos.
Preferi ficar a certa
distância, considerando que este era um momento muito íntimo para os familiares.
Mas como ficar impassível, sem ser contagiado pela emoção geral? Quase meio século
se passou, as imagens continuam fortes na minha memória.
Ainda fiquei um ano em Portugal após este memorável 25 de
abril de 1974, também conhecido como Revolução dos Cravos devido às flores
oferecidas pelos populares aos soldados rebeldes, revolução que só vitimou
quatro civis, todos mortos pela temida DGS (Direção-Geral de Segurança). Após
décadas de altos e baixos, Portugal se transformou num paraíso europeu enquanto
vivemos aqui um inferno político.
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